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Formação de agentes públicos como fator de mudança em licitações

Por Cristiana Fortini



O dia a dia das contratações públicas demanda acurado olhar direcionado não apenas às regras do procedimento licitatório, com vistas a pavimentar o caminho da boa contratação, mas também à formação dos agentes públicos que lidam com o tema.

Não haverá ganho real de eficiência, ainda que se introduzam novas modalidades de licitação, altere-se o critério para a seleção do vencedor, aperfeiçoe-se a regra condutora da fase de habilitação, se os agentes encarregados do percurso, desde a sua origem até a execução do contrato, são despreparados.

Ferramentas tecnológicas não suplantam a força humana propulsora  do iniciar do certame. São as pessoas que expressam a demanda pública, assim como comandam os demais passos do procedimento.

A construção dos editais, a capacidade de percepção das falhas, a noção exata do que se quer contratar e como, além da fiscalização dos contratos, dependem intrinsecamente da formação adequada e capacitação permanente desses importantes atores.

É necessário questionar quem está a lidar com as licitações e contratos administrativos, assim como qual é a realidade que circunscreve esse agente, e em quais condições fáticas, estruturais e institucionais ele está a perseguir a melhor contratação[1]. Afinal, uma norma geral, de aplicação nacional, é submetida a realidades plurais, desde os rincões brasileiros às grandes metrópoles e aos centros políticos de poder.

Em tempos de discussão sobre a reforma do marco legal central das contratações públicas, é importante ver se e como a matéria foi abordada no PL 1.292/95[2].

O PL não exige a criação de cargos isolados ou organizados em carreira voltados especificamente para o setor das contratações públicas. Claro que cada esfera de governo pode assim deliberar, mas não há previsão de comando nacional[3].

Portanto, os agentes públicos não serão selecionados para unidades de trabalho criadas especialmente para o enfrentamento das licitações e contratos, salvo se assim ordenarem leis outras, emanadas por diversas esferas de governo[4].  

A criação de cargos e empregos específicos para a consumação dos passos desde a fase interna até a fase de execução contratual contribuiria para a profissionalização das funções inerentes ao mercado público[5].

Uma vez inexistente comando a exigir cargos/empregos e carreira com tal perfil, os concursos públicos não apurarão, necessariamente, conhecimento especifico sobre a matéria em exame, como ocorreria (ou deveria ocorrer) se o procedimento fosse voltado para a seleção de pessoas cujas competências correlatas ao posto de trabalho ambicionado se relacionassem à fase do ciclo contratual.

A necessidade de profissionalização, reclamada em todos os setores de atuação estatal[6], é importante mecanismo na área da contratação pública diante não só dos elevados recursos envolvidos, mas do papel regulador desempenhado pelo Estado, na condição de contratante, além do alto risco de corrupção.

A estruturação de cargos e carreiras específicas avançaria sobre as iniciativas já adotadas de forma pulverizada pelo país, que se voltam à capacitação e formação profissional de agentes públicos, a exemplo da Política e Diretrizes para o Desenvolvimento de Pessoal da administração pública direta, autárquica e fundacional, cujo intuito é incorporado ao PL.

O IPEA, em Nota Técnica elaborada em 2014, destacou que a reforma no regulamento de licitações e contratos ofereceria a oportunidade para se criarem condições de desenvolvimento de agentes públicos especializados na temática. Naquela oportunidade, pontuou-se:

“Também em parte devido à ausência da carreira, ficam faltando incentivos, inclusive de remuneração adicional, para que esses profissionais se qualifiquem no exercício da tarefa. Seus procedimentos, quando não estritamente baseados na letra da lei, também provêm da experiência dos seus pares e também da jurisprudência dos Tribunais de Contas, cujos funcionários são muito mais qualificados, por estarem em carreiras mais bem-estruturadas e bem-remuneradas”[7].

Segundo estudo realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 18 dos 29 países reconhecem o comprador enquanto carreira específica[8].

Mas o PL tem outros aspectos importantes.

No capítulo IV (“Dos Agentes Públicos”), desenha-se o perfil dos agentes públicos que se incumbirão das funções essenciais à execução da Lei.

O “agente de licitação”, responsável por tomar decisões, acompanhar e impulsionar a licitação, e executar as atividades necessárias ao seu bom andamento, há de ser servidor público efetivo ou empregado público pertencente aos quadros permanentes, que poderá ser auxiliado por equipe destinada a este fim[9].

A exigência de que os agentes de licitação sejam servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração Pública contribui para limitar a rotatividade por onde pode esvair a experiência acumulada.  Sob esse ângulo, a proposta soa ajustada, mas teme-se que o intuito de aprisionar o conhecimento advindo do dia a dia impeça a importante colaboração que profissionais bem preparados poderiam oferecer na condição de ocupantes de cargos comissionados.

Especificamente no que diz respeito ao pregão, modalidade que passa a ser disciplinada no mesmo corpo legal, a alteração é ainda mais relevante. Hoje, a teor do que o artigo 3º, IV da Lei 10.520/02, o pregoeiro pode ser ocupante de cargo comissionado. O foco, antes de centrado na natureza do cargo, está na habilidade de conduzir certame marcado pelo caráter negocial.

O artigo 7º do PL, ainda, está a prever que o exercício das diversas funções necessárias no ciclo da contratação condiciona-se à formação compatível ou qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo Poder Público, que se sabe não estão disseminadas como pode o texto sugerir[10][11].

Portanto, além de ocupar cargo de provimento efetivo e emprego integrante dos quadros permanentes, a condição de agente da licitação, nome dado pelo artigo 8º do PL, depende de qualificação prévia.  Interessante imaginar como os municípios, em especial, enfrentarão o tema, diante da ausência de escolas de governo e da dificuldade financeira para fazer sustentar a contratação de cursos e treinamentos.

Ao mesmo tempo, o artigo 172 do PL prevê que “os tribunais de contas deverão, por meio de suas respectivas escolas de contas, promover eventos de capacitação para os servidores efetivos e  empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei, incluindo cursos presenciais e à distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas”.

O projeto de lei, como se vê, enaltece as escolas dos tribunais de contas, trazendo-as para dentro da Lei de Licitações, a quem caberá promoção de capacitação de agentes públicos encarregados da realização de licitação e da celebração de contratos.

Observa-se, entretanto, que o verbo escolhido encerra uma obrigação, não um convite. Aos tribunais de contas, via escolas de contas, se atribuirá (ganho assim seja aprovado) um novo papel, não previsto expressamente na Constituição da República[12], embora já exercido na prática por boa parte das cortes de contas.

Interessante anotar, de todo modo, que a prevenção de desacertos, fruto do despreparo, harmoniza-se com o perfil menos repressivo e mais pedagógico defendido como mais adequado para os referidos órgãos. A esse respeito, deve ser recordado que parte considerável dos erros é decorrente antes ao desconhecimento do que ao intuito de ofender o interesse público e as normas que o salvaguardam. A capacitação pode evitar erros grosseiros referidos na Lei 13.655/18 que, por sua vez, conforma a função de controle.

Na experiência comparada, a Diretiva Europeia 2014/24, que orienta as contratações públicas no âmbito dos países membros da União Europeia, também registra a preocupação com a profissionalização das chamadas “autoridades adjudicantes”[13], que lidarão com o procedimento licitatório. Neste sentido, a orientação, informação e apoio são vistos como medidas fundamentais à eficiência da contratação pública.

As noções que serão disponibilizadas a estes agentes perpassarão as matérias essenciais à condução da contratação desde o seu germinar, abrangendo o planejamento das aquisições, os procedimentos, a escolha das técnicas e instrumentos e as boas práticas de condução dos procedimentos, além dos elementos jurídicos que lastrearão o agir dos agentes[14].

Assim, percebe-se que o Projeto de Lei tanto realça a participação das escolas de governo, quanto a contribuição dos tribunais de contas.

A nosso ver, a incongruência entre os dois dispositivos, um a encarregar os tribunais de contas outro a reconhecer as escolas de governo como órgãos encarregados da profissionalização do corpo funcional público, é apenas aparente.

A interpretação possível a conferir sintonia ao conjunto do texto seria a de que a capacitação inicial demandaria o envolvimento da administração (via escola de governo), a fim de que eles estivessem aptos ao desempenho das funções, dado que tal qualificação consta do artigo 7, II, enquanto os tribunais de contas atuariam, após a designação dos agentes públicos, visando o constante aperfeiçoamento. Em verdade, a realidade, sobretudo na esfera municipal, não legitima grandes esperanças em termos de real capacitação. Os TCs, diferentemente, estão, em regra, aptos técnica e administrativamente para tal mister.

Mudanças formais isoladamente não solucionam o problema da eficiência e não eliminam o risco de corrupção. Traçar novos caminhos que podem revigorar a licitação é necessário. Mas a verdadeira reforma ocorrerá se de fato se reconhecer que o agente público precisa ser preparado para assumir funções que direta ou indiretamente envolvem gastos de recursos públicos e a concretização do interesse da coletividade.

*Este artigo foi escrito com a colaboração do advogado Gabriel Fajardo.

[1] Ressalta-se a iniciativa da Lei 13.655/18, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em considerar a realidade do gestor e suas dificuldades, nos termos do art. 22: “Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.”

[2] Este artigo foi escrito enquanto a Câmara de Deputados estava reunida para discutir o assunto.

[3] Eventual imposição nesse sentido poderia ser rotulada como inconstitucional, por ferir a autonomia dos entes federados. Mas o PL poderia, fosse esse o entendimento político, assim disciplinar na esfera federal.

[4] É importante ressaltar que, no âmbito do pregão, a legislação tratou com maior cuidado a figura do pregoeiro, prevendo, inclusive, a necessidade de haver capacitação prévia específica para a atribuição, conforme previsto no parágrafo único do artigo 7º do Decreto 3.555/2000.

[5] Alguns entes federados já vêm criando cargos específicos para pregoeiros, com concursos públicos realizados para este fim. São exemplos o município de Salto do Céu, no Mato Grosso, através da Lei 615/2018, e o Município de Santa Luzia, em Minas Gerai, através da Lei 3.920/18.

[6] Salientam-se iniciativas já adotadas com o intuito de promover a profissionalização dos agentes que lidam com as licitações e contratos administrativos. Convém citar que a Instrução Normativa 01/2018 do Ministério do Planejamento previa a indicação de servidor para a compor a equipe de planejamento da contratação, e quando couber, também à fiscalização, considerando-se, na indicação, a compatibilidade do cargo, a complexidade da fiscalização, o quantitativo de contratos por servidor e a sua capacidade para o desempenho das atividades. A referida IN, contudo, foi revogada pela IN 01/2019.

[7] FIUZA, Eduardo Pedral Sampaio; MEDEIROS, Bernardo Abreu de. A reforma da Lei 8.666/93 e do arcabouço legal de compras públicas no Brasil: contribuições do Ipea à consulta pública do Senado. Brasília: Ipea, out. 2013. (Nota técnica, n. 8). Disponível em: http://tinyurl.com/notatecnicaipea08.

[8] OCDE (2013). https://www.oecd.org/gov/government-at-a-glance-2017-highlights-en.pdf

[9] Em licitações especiais, entendidas como aquelas que envolvam bens e serviços cujo objeto não seja rotineiramente contratado pela Administração Pública, poderá o agente de licitação contar com serviço de empresa ou de profissional especializado para seu assessoramento na condução da licitação. Poderá, ainda, haver a substituição do agente de licitação por comissão, aos moldes da atual previsão da Lei 8.666/93, desde que também qualificado o objeto da contratação como bens e serviços especiais.

[10] Há ainda o inciso III aqui não comentado porque escapa aos contornos que se pretende observar .

[11] Os requisitos descritos nos incisos I e II do artigo 7º se estendem aos órgãos de controle interno e de assessoramento jurídico

[12] Não se desconhece a instituição das Escolas de Contas pela Lei Orgânica dos próprios Tribunais de Contas. A exemplo do Tribunal de Contas de Minas Gerais, na Lei Complementar 102/18, a Escola de Contas foi criada com o objetivo de “promover ações de capacitação e desenvolvimento profissional dos servidores do Tribunal, bem como difundir conhecimento aos gestores públicos”.

[13] O artigo 2º da Diretiva Europeia 2014/24 define autoridade adjudicante como sendo “as autoridades estatais, regionais ou locais, organismos de direito público e associações formadas por uma ou mais dessas autoridades ou organismos de direito público;”

[14] Nos termos do “considerando” 121 da Diretiva Europeia 2014/24.

 

Fonte: Conjur.

 

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