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As novas regras para concursos públicos: planejar é preciso

Por Fabrício Motta



O novo governo tem utilizado bastante da competência constante do artigo 84, inciso VI da Constituição: até o momento em que escrevo este artigo, foram publicados 105 decretos, quase um por dia de governo. Esse grande número de atos normativos, mesmo dificultando o respectivo acompanhamento pari passu, permite verificar a busca de ocupação de espaços normativos que não dependem da edição de lei em sentido formal, geralmente vocacionados às questões ligadas à organização e procedimentos no interior da administração pública.

Um dos atos que se insere nesse perfil é o Decreto 9.739, de 28 de março, que “estabelece medidas de eficiência organizacional para o aprimoramento da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, estabelece normas sobre concursos públicos e dispõe sobre o Sistema de Organização e Inovação Institucional do Governo Federal – SIORG”. Restrinjo minha análise à disciplina dos concursos públicos na esfera federal, até então disciplinados pelo Decreto 6.944/09, expressamente revogado pelo novo diploma.

No ano de 2015, escrevi neste mesmo espaço a respeito da importância do planejamento para que o concurso público possa atingir seus objetivos. Naquela oportunidade, antes de elencar — sem caráter exaustivo — uma série de providências prévias importantes para o planejamento dos concursos, escrevi:

“A realização de concurso público prévio ao acesso aos cargos e empregos públicos objetiva realizar os princípios consagrados em nosso sistema constitucional, notadamente os princípios da democracia e isonomia, e efetiva-se por meio de processo administrativo. Utilizando este mecanismo, são atendidas também as exigências do princípio da eficiência, neste momento entendido como a necessidade de selecionar os mais aptos para ocupar as posições em disputa e proporcionar uma atuação estatal otimizada. O acesso aos cargos e empregos públicos deve ser amplo e democrático, precedido de um procedimento impessoal onde se assegurem igualdade de oportunidades a todos interessados em concorrer para exercer os encargos oferecidas pelo Estado, a quem incumbirá identificar e selecionar os mais adequados, mediante critérios objetivos. O concurso público não é um fim em si mesmo, mas meio para a identificação objetiva dos mais aptos ao exercício de funções estatais. Por essa razão, o concurso deve ser objeto de rigoroso planejamento justamente para que atinja seus objetivos”[1].

Muitas das providências tratadas naquele momento foram agora disciplinadas pelo Decreto 9.739/19, trazendo regramento mais detalhado do planejamento dos concursos públicos. O novo regime continua a reconhecer, como fazia o diploma anterior, que concursos e o respectivo provimento dos cargos são instrumentos para fortalecimento da capacidade institucional de órgãos e entidades da administração pública.

O reforço à importância do planejamento foi feito por intermédio da identificação de itens imprescindíveis para o pedido de autorização do concurso, ato inicial prévio à deflagração externa da seleção pública. Não é difícil perceber a tônica que inspira a edição da nova norma: controle de gastos e preferência pela prestação dos serviços de forma terceirizada ou mediante plataformas digitais, quando possível.

As primeiras exigências que deverão instruir o pleito de autorização residem na identificação do “perfil necessário aos candidatos para o desempenho das atividades do cargo” (artigo 6º, I) e na “descrição do processo de trabalho a ser desenvolvido pela força de trabalho pretendida e o impacto dessa força de trabalho no desempenho das atividades finalísticas do órgão ou da entidade” (artigo 6º, II). Trata-se de informações essenciais para que o concurso possa atingir sua verdadeira finalidade: identificar os mais aptos para a realização de determinadas competências. Essas informações, se apuradas com fidedignidade, constituirão importante norte para que o concurso possa realmente selecionar profissional com as habilidades específicas necessárias para cada cargo. A atenção a essas informações deve subsidiar os responsáveis pela elaboração do certame e evitar provas genéricas, confusas, desconectadas com os saberes que realmente são esperados do candidato para bem servir o público. Na expressão popular, concurso não deve selecionar o melhor “cumpridor de edital”, mas, sim, o profissional que possua conhecimentos e habilidades ligados ao desempenho das atividades do cargo.

O detido planejamento do número de vagas a ser oferecido é essencial para que o concurso possa atingir seu desiderato em um dado lapso temporal. São elementos essenciais para esse estudo as informações relativas ao número de vagas disponíveis em cada cargo (artigo 6º, III); a evolução do quadro de pessoal nos últimos cinco anos, com movimentações, ingressos, desligamentos e aposentadorias e a estimativa de aposentadorias, por cargo, para os próximos cinco anos (artigo 6º, IV) e o quantitativo de servidores ou empregados cedidos e o número de cessões realizadas nos últimos cinco anos (artigo 6º, V).

Esses dados permitirão a concepção de um certame com número de vagas e cadastro de reserva adequados à realidade de cada cargo ou emprego, durante o prazo de validade da seleção. Com efeito, a rotatividade nos diversos cargos públicos não é idêntica, estando sujeita a uma série de variáveis. A rotatividade nos cargos que exigem formação jurídica e possuem remuneração pouco atrativa, por exemplo, costuma ser alta em razão do alto número de concursos e da existência de carreiras com melhor remuneração. O mesmo não costuma ocorrer em carreiras cujos cargos exigem formação em outras ciências sociais ou ciências humanas, em razão da menor quantidade de concursos na respetiva área. Essas informações devem ser objeto de acurado estudo por parte do setor de gestão de pessoal para que os gastos com a realização do concurso possam ser justificados com um número de aprovados adequado a cada realidade.

A preferência pela prestação de serviços sem provimento de cargos públicos é perceptível pela observância dos incisos VII a XIV do artigo 6º[2]. A lógica a inspirar tal preferência certamente é o controle dos gastos com pessoal, nos limites previstos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, uma vez que as demais formas de prestação de serviços também acarretam gastos, mas não computados como “gastos de pessoal” para efeito das restrições. Especialmente no tocante à terceirização, é importante relembrar a impossibilidade jurídica do exercício de atribuições legalmente acometidas a cargo público por intermédio de contratos de terceirização. Como sobejamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência.

A limitação para a nomeação de candidatos aprovados e não convocados ao limite de 25% do quantitativo original (artigo 28), por sua vez, se por um lado contribui para a lógica do controle de gastos, por outro atenta contra o sentido do planejamento dos gastos. Os novos requisitos apontam para uma organização individualizada dos concursos, atenta às necessidades e peculiaridades de cada seleção. A análise das informações prévias constantes do artigo 6º do decreto pode recomendar convocação maior do que o limite estabelecido, diante das peculiaridades do caso concreto. A restrição pode, em determinados casos, impedir a otimização dos gastos já efetivados — concurso já findo — mediante a convocação de aprovados, em circunstâncias específicas. Nesse particular, entendo que foi perdida oportunidade de deixar ao gestor maior margem para a definição de quantitativos, com a contrapartida de reforçar a exigência de estudos, informações e projeção de cenários na gestão de pessoal.

Em suma, no tocante aos concursos, o novo regramento traz avanços importantes. O concurso deve ser pensado como um dos instrumentos de gestão de pessoal, ligado ao estágio probatório, avaliação permanente de desempenho e capacitação do servidor público. Para a prestação de serviços públicos com qualidade, eficiência e cortesia ao cidadão, concurso é só o primeiro passo. Renovo a conclusão do artigo publicado em 2015: “o planejamento do concurso é tão importante quanto sua execução — descurar dessa etapa inicial implica submeter a Administração a grande risco de despender esforços, tempo e recursos em vão”.

[1] https://www.conjur.com.br/2015-nov-12/interesse-publico-concurso-publico-exige-planejamento-atingir-objetivos
[2] “art. 6º [...] VII - o nível de adoção dos componentes da Plataforma de Cidadania Digital e o percentual de serviços públicos digitais ofertados pelo órgão e pela entidade, nos termos do art. 3º do Decreto nº 8.936, de 19 de dezembro de 2016; VIII - a aderência à rede do Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse - Rede Siconv e a conformidade com os atos normativos editados pela Comissão Gestora do Siconv; IX - a adoção do sistema de processo eletrônico administrativo e de soluções informatizadas de contratações e gestão patrimonial, em conformidade com os atos normativos editados pelo órgão central do Sistema de Administração de Serviços Gerais - SISG; X - a existência de plano anual de contratações, em conformidade com os atos normativos editados pelo órgão central do SISG; XI - a participação nas iniciativas de contratação de bens e serviços compartilhados ou centralizados conduzidas pela Central de Compras da Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia; XII - a quantidade de níveis hierárquicos e o quantitativo de profissionais por unidade administrativa em comparação com as orientações do órgão central do SIORG para elaboração de estruturas organizacionais; XIII - demonstração de que a solicitação ao órgão central do SIPEC referente à movimentação para composição da força de trabalho de que trata o § 7º do art. 93 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, foi inviável ou inócua; e XIV - demonstração de que os serviços que justificam a realização do concurso público não podem ser prestados por meio da execução indireta de que trata o Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018.”

Fonte: Conjur.

 

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