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Sinalização inicial da MP da

Por Fabrício Motta



Há um senso comum de que não é fácil empreender no Brasil. Mesmo o cidadão que não é e não quer ser empreendedor, ao enfrentar a complexidade burocrática exigida pelos mais simples atos da vida civil, tende a concluir que a ineficiência do Estado é determinante para tornar árido o ambiente de negócios no país.

O Tribunal de Contas da União instituiu, por meio de ordem de serviço (Segecex 1/2018), um grupo de trabalho para enfrentar o tema “Disfunções da burocracia estatal, com impacto negativo no ambiente de negócios e na competitividade de organizações produtivas, prejudicando o desenvolvimento nacional”.

Como consta em histórico no corpo do Acórdão 634/2019-Plenário, o grupo de trabalho estabeleceu como visão de futuro a ser perseguida um “ambiente de negócios livre de entraves burocráticos favorecendo a produtividade e competitividade das organizações”. Para tanto, definiu como objetivo estratégico “criar no setor público uma cultura de identificação e eliminação das disfunções da burocracia que afetam o ambiente de negócios”. Também foi definida a meta de “reduzir tempo e custo de empresas com burocracia estatal, sem prejuízo dos controles absolutamente necessários”. O acórdão possui elementos relevantes para compreender a influência da ineficiência do Estado no ambiente de negócios do país, com reflexos no alcance do desenvolvimento econômico preconizado pelo texto constitucional.

Nesse contexto temático, o acórdão analisou a concessão de registros e autorizações por parte da Anvisa e a implantação do eSocial Empresas. Em relação à Anvisa, em apertada síntese:

“[...] foi possível constatar que aquela Agência não vem sendo capaz de assegurar a realização do registro de produtos, como medicamentos, cosméticos, saneantes etc. dentro dos prazos legais. Observou-se, ainda, que os prazos totais para registro não estão disponíveis para consulta pública. Ou seja, a Agência não disponibiliza, com transparência, informações sobre o tempo que leva para concluir os registros. Adicionalmente, observou-se que a Agência carece de uma sistemática unificada para controle dos prazos que abarque os diversos setores envolvidos. As entrevistas realizadas também demonstraram que existe morosidade considerável na concessão de autorizações para que as empresas possam iniciar suas atividades. Essa situação impõe prejuízos importantes às empresas envolvidas, que se veem impedidas de operar no mercado de forma a remunerar seus investimentos. Um dos fatores que contribuem para essa situação é a inexistência, no âmbito do SNVS, de mecanismos de controle e monitoramento da qualidade dos serviços prestados pelas vigilâncias dos estados e dos municípios, as quais são responsáveis pela realização dos licenciamentos locais e de vistorias prévias às concessões das autorizações de funcionamento. Constatou-se, ainda, a inadequação do sistema de peticionamento eletrônico utilizado pela Anvisa para atender o setor regulado e as necessidades operacionais da própria agência. Essas deficiências vêm sendo responsáveis por desperdício de recursos, na medida em que, para o peticionamento do registro de certos produtos, as empresas necessitam imprimir a documentação e entregá-la fisicamente à Anvisa, que a digitaliza logo em seguida. Além disso, essas empresas são obrigadas a despender recursos com deslocamentos e hospedagem ou com despachantes para poderem entregar a documentação fisicamente na sede da Anvisa, situação que não se justifica no atual estágio de desenvolvimento tecnológico”.

No que pertine ao eSocial Empresas, pondera o ministro relator Vital do Rego:

“[...] há que se considerar, inicialmente, que foi concebido com o propósito de simplificar a prestação de informações ao Governo e, portanto, contribuir para a redução das disfunções burocráticas que afetam as empresas em geral, inclusive as industriais. Além disso, deverá contribuir para a garantia de direitos dos trabalhadores e para aumentar a eficiência da fiscalização do cumprimento das obrigações fiscais, previdenciárias e trabalhistas e, consequentemente, para a redução de fraudes e sonegações. É necessário, portanto, que haja um equilíbrio entre esses objetivos, de forma que a satisfação de uns não inviabilize o alcance dos demais. Entretanto, as informações levantadas por meio de entrevistas e do acompanhamento de publicações sobre o tema, revelaram que a forma como o novo sistema tem sido implantado vem exigindo esforços excessivos das empresas, especialmente, em função frequentes atualizações de versões e leiautes do Sistema e sucessivas postergações na progressão da implantação. Segundo foi apurado, essas dificuldades relatadas originam-se, entre outros fatores, de problemas de gestão e articulação entre os órgãos envolvidos e do planejamento deficiente da implantação. O presente relatório demonstra que muitas ações de apoio aos usuários somente foram sendo adotadas ao longo do ano de 2018. Um exemplo importante é a implantação do call center apenas a partir de agosto desse ano”.

Esse cenário de interferência excessiva e ineficiente do Estado no ambiente de negócios, diminuindo o potencial de inovação, empreendedorismo e a segurança do ambiente de negócios, inspirou a edição da Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Os princípios retores da nova norma encontram pleno assento no texto constitucional: presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas; presunção de boa-fé do particular; e intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas (artigo 2º). A competência da União para a disciplina legislativa do tema encontra-se no artigo 24, inciso I, (normas gerais de direito econômico).

A medida provisória objetiva fornecer elementos que aprofundem a compreensão da livre-iniciativa, um dos elementos fundantes da ordem econômica brasileira (artigo 170). Ao estabelecer diversas garantias para a plena efetividade do princípio, as novas regras pretendem simplificar o ambiente de negócios ao devolver ao princípio da legalidade seu conteúdo original, no que pertine à intervenção na ordem econômica: tornar a exigência de atos de liberação de atividades excepcional, de acordo com o risco da atividade, e considerar regra a liberdade de desenvolver atividades econômicas de baixo risco sem necessidade de autorização do Estado (artigo 3º, inciso I).

A necessidade excessiva de atos de liberação, em todas as esferas da federação, torna a atividade de empreender custosa e demorada, além de abrir oportunidades corruptivas — no jargão popular, o famoso dito “criar dificuldades para vender facilidades”. Desta forma, a simplificação dos atos de liberação de atividades — atos que se encaixam no clássico poder de polícia — é bem-vinda, desde que executada e fiscalizada com eficiência.

Tomo a liberdade de escolher para análise um ponto específico da medida provisória: a necessidade de análise de impacto regulatório para as propostas de edição e alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, desde que editados por órgão ou entidade da administração pública federal — incluídas autarquias e fundações públicas (artigo 5º). O dispositivo delimita como elementos do estudo informações e dados sobre possíveis efeitos do ato normativo a verificação da razoabilidade do impacto econômico da medida. Entretanto, a MP delega a regulamento posterior a definição de dados essenciais para a implementação da análise de impacto regulatório, como a data de início da vigência, conteúdo e metodologia da análise, bem como requisitos mínimos a serem estudados e as hipóteses em que a análise é obrigatória e em quais pode ser dispensada.

Por outro lado, o texto elaborado por comissão de juristas do Grupo Público da FGV Direito SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP)[1] sugeriu linhas gerais para os chamados atos de imposição de deveres e condicionamentos públicos (como no artigo 4º, parágrafos 1º, 4º; artigo 7º e 9º), com menção a princípios a serem observados quando da instituição de medidas de regulação, com diretrizes que poderiam ter sido utilizadas como base para a definição da análise de impacto regulatório. A importante sugestão da realização de “avaliações periódicas da eficácia e do impacto de todas as medidas de ordenação pública, no mínimo a cada cinco anos, e, quando for o caso, sua revisão”, por outro lado, não foi acatada.

A análise de impacto constitui subsídio essencial para as escolhas públicas, notadamente em razão das muitas variáveis e interesses envolvidos. A exigência de estudos pautados em dados e a elaboração de cenários preditivos afasta o danoso voluntarismo subjetivista, amadorismo inaceitável no atual estágio de desenvolvimento tecnológico, escassez de recursos e excesso de demandas sociais e econômicas. Em se tratando de medidas interventivas na liberdade, como são aquelas relativas à liberação de atividades econômicas, a realização da análise prévia assume ainda maior importância.

A análise do texto por parte do Congresso Nacional permitirá aprofundar o debate a respeito dos muitos temas relevantes tratados pela medida provisória. De qualquer forma, vejo como positiva a sinalização inicial de valorizar a boa-fé do particular, a segurança do ambiente econômico e de não tornar o Estado um adversário do empreendedor.


[1] Coordenado pelos eminentes juristas Carlos Ari Sundfeld (FGV-SP), Eduardo Jordão (FGV-RJ), Egon Bockmann Moreira (UFPR), Floriano Azevedo Marques Neto (USP), Gustavo Binenbojm (Uerj), Jacintho Arruda Câmara (PUC-SP), José Vicente Santos de Mendonça (Uerj) e Marçal Justen Filho (ex-UFPR).

 

Fonte: Conjur.

 

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