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Acordos de não persecução na improbidade administrativa — o início, o fim e o meio

Por Luciano Ferraz



Não é novidade para os leitores desta coluna a particular dedicação acadêmica que reservo a temáticas como consensualidade administrativa e segurança jurídica. São temas, a bem dizer, com os quais convivo nas últimas duas décadas, desde tempos que precederam os estudos doutorais apresentados na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no inverno de 2003. [1]

Em artigo publicado aqui na Conjur, no dia 9 de agosto de 2018, por exemplo, sob o título “LINDB autoriza TAC em ações de improbidade administrativa” sustentei que as disposições dos artigos 26 e 27 da LINDB, incluídos pela Lei 13.655/18, autorizavam a firmação de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) nas ações de improbidade administrativa, mercê da superação interpretativa da vedação prevista no art. 17, §1º da Lei 8.429/92. [2]

Deveras, a redação primitiva do §1º do art. 17 da Lei 8.429/92 encontrava-se na contramão das evoluções legislativas do país, as quais expressamente passaram a admitir instrumentos de consensualidade administrativa na prevenção e solução de litígios, tais como os termos de ajuste de conduta (TAC), os termos de ajustamento de gestão (TAG), os acordos substitutivos (AS) e outros métodos de solução de controvérsia baseados no princípio da consensualidade (preâmbulo e art. 4º, VII da Constituição).

Com efeito, um passeio por disposições fragmentárias do ordenamento jurídico pátrio revela essa abertura à consensualidade, a ver, exemplificativamente: (a) art. 5º, § 6º da Lei 7.347/85, com a redação dada pela Lei 8.080/90 (termos de ajustamento de conduta); (b) art. 71, IX da Constituição e art. 59, §1º da Lei de Responsabilidade Fiscal (termos de ajustamento de gestão); (c) art. 86, §6º da Lei 12.529/11 (acordos de leniência do CADE); (d) art. 16 da Lei 12.846/13 (acordos de leniência na improbidade empresarial); (e) art. 17 da Lei 12.846/13 (acordos substitutivos de inexecução contratual); (f) Lei 13.129/15 (arbitragem na administração pública); (g) Lei 13.140/15 (auto composição de conflitos e mediação na administração pública).

Não é demais repetir, para fins de registro, que o art. 17, §1º da Lei 8.429/92 na redação original sempre me pareceu inconstitucional. Primeiramente, porque conflitava com o preâmbulo da Constituição (que propõe compromisso do Brasil com a solução pacífica dos conflitos, na ordem interna e internacional) e com o princípio previsto no art. 4º, VII da Constituição (que orienta a atuação do Estado brasileiro, na ordem internacional, à solução pacífica dos conflitos – seria contraditório não seguir o comando na ordem interna). Secundariamente, porque a regra hostilizada guardava potencial de confronto, em casos específicos, com os princípios constitucionais da eficiência (art. 37, caput) e da economicidade (art. 70, caput), a merecer, no mínimo, interpretação conforme a Constituição, caso a caso.

Além do mais, a redação primeira do dispositivo hostilizado literalmente somente vedava a transação, acordo ou conciliação nas ações (judiciais) de improbidade administrativa, e, portanto, não proibia iniciativas consensuais no curso dos inquéritos civis precedentes – o que, a bem da verdade, amenizava a idiossincrasia da disposição, não se verificando, todavia, na prática, “boa vontade” dos órgãos legitimados para fazer uma leitura menos “armada” do preceito normativo.

A Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, ao alterar a redação do §1º do art. 17 da Lei 8.429/92, colocou um pá de cal às discussões. O dispositivo passou a dispor que as ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta lei” e o novo §10-A acrescentou que “havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias.” [3]

A alteração legislativa resolve literal e definitivamente a questão da possibilidade de aplicação de instrumentos de controle consensual no âmbito da ação de improbidade administrativa. O acordo de não persecução cível deixa patenteado que tanto na etapa extrajudicial – inquérito civil, administrativo, penal – quanto na esfera judicial da ação de improbidade é possível a solução do conflito com aplicação do princípio da consensualidade.

Não se vislumbra qualquer prejuízo à compreensão de tais acordos (de não persecução) por conta do veto oposto pelo Presidente da República ao art. 17-A do projeto de lei do qual se originou a Lei 13.964/19. [4] Ditos acordos são semelhantes, para não dizer idênticos, aos termos de ajustamento de conduta e outros afins, podendo ser utilizados para entabular consensualmente compromissos entre as partes que levem à extinção do inquérito ou da ação de improbidade administrativa.

A legitimidade para a firmação desses acordos de não persecução cível é das mesmas partes que possuem legitimidade para a propositura das ações de improbidade administrativa, nos termos do art. 17, caput da Lei 8.429/92, ou seja, do Ministério Público ou da pessoa jurídica interessada (lesada). Quando o Ministério Público não intervir como parte deverá atuar como fiscal da lei, sob pena de nulidade, na forma do §4º do art. 17 da Lei 8.429/92, o que garante a participação do parquet em quaisquer das hipóteses.

Note-se que o referido acordo de não persecução cível – como o próprio nome e a própria lei querem deixar ver – somente poderá ser firmado até a contestação e não depois, conforme a disciplina legislativa (art. 10-A da Lei 8.429/92). Porém isso não significa, em definitivo, que, após a contestação, estejam as partes impedidas de extinguir a ação de improbidade administrativa, todavia pelo uso de outros instrumentos de consensualidade, tais como o termo de ajustamento de conduta, os acordos substitutivos ou os compromissos processuais (art. 5º, §6º da Lei 7.347/85 e art. 26 e 27 da LINDB), que visam fidedignamente ao objetivo de atingir o mesmo fim.

Com efeito, o empecilho levantado para a impossibilidade de utilização da consensualidade no âmbito da improbidade administrativa sempre foi a vedação que constava do §1º do art. 17 da Lei 8.429/92 (“o início”), que agora encontra-se expressamente derrogada. É dizer que, no âmbito da ação de improbidade administrativa, até a contestação, o instrumento de consensualidade utilizável é o acordo de não persecução cível (“o meio”). Após a contestação – inclusive em grau de recurso ou na etapa do cumprimento de sentença –, as partes legitimadas poderão se valer, para os mesmos fins a que se destina o acordo, de instrumentos como os termos de ajustamento de conduta (art. 5, § 6º da Lei 7.347/85), os acordos substitutivos (art. 26 da LINDB) ou, ainda, os compromissos processuais (art. 27 da LINDB) –, cada qual a sua medida, sempre com a intenção de solucionar consensualmente a controvérsia no seio da ação de improbidade administrativa (“o fim”).

Em suma, ultrapassada a fase dos debates sobre o cabimento do consenso em ações de improbidade — o “início”, o legislador nacional previu — os “meios” — entre os quais os acordos de não persecução cível”, os termos de ajustamento de conduta e outros instrumentos afins, utilizáveis cada um deles em determinado momento processual, sempre com o objetivo de atingir idêntico “fim” (a resolução do conflito).

As alterações legislativas dos últimos tempos deixam ver que a lida com a Administração Pública Brasileira felizmente tem caminhado, na sintética expressão do Desembargador do TRF da 1ª Região, João Batista Gomes Moreira, “da rigidez autoritária à flexibilidade democrática”. [5]

Como diria Raul Seixas: “o início, o fim e o meio”.


[1] O livro resultante da tese foi publicado, em 2019, mais de 15 (quinze) anos depois da defesa do título de doutoramento. Ver: Controle e Consensualidade: fundamentos para o controle consensual da Administração Pública, Belo Horizonte: Forum, 2019.

[2] Nesse sentido, ver o Enunciado 21 do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo): “Os artigos 26 e 27 da LINDB constituem cláusulas gerais autorizadoras de termos de ajustamento, acordos substitutivos, compromissos processuais e instrumentos afins, que permitem a solução consensual de controvérsias.”

[3] A nomenclatura “acordo de não persecução cível” não deve merecer uma interpretação reducionista, porque isso não condiz com a natureza sancionatória da ação de improbidade administrativa, aliada ao caráter administrativo, político e civil das sanções respectivas, os quais revelam que algo mais do que a esfera cível está em jogo nesse tipo de ação. É por isso que, na minha compreensão, a justificativa para o uso desse termo tem fundamento na natureza processual civil do instituto, que se apartaria, sob o prisma processual, de instrumentos de mesmo quilate, porém de natureza processual-criminal.

[4] Em sentido contrário, entendendo que o veto traz prejuízos, ver ZUFELATO, Camilo. CARVALHO, Lucas Vieira. “Lei Anticrime” prevê acordos em ações de improbidade administrativa”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-08/lei-anticrime-preve-acordos-acao-improbidade-administrativa.

[5] A obra acadêmica do Desembargador João Batista Gomes Moreira é intitulada Direito Administrativo: da rigidez autoritária à flexibilidade democrática, 3. ed., Belo Horizonte: Fórum, 2016.

 

Fonte: Conjur.

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