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Tribunal de Contas como árbitro do ressarcimento na nova LIA

Por Luciano Ferraz



A Lei 8.429/92, no início dos anos 1990 e durante muito tempo, traduziu uma visão tradicional e antiquada da atividade de controle da administração pública, com foco num sistema intransigente e punitivista. Ainda há resquícios expressivos dessa tendência nos quatro cantos da Administração Pública brasileira, no Ministério Público, no Tribunal de Contas, no Poder Judiciário. Vigiar e punir é ideia que mexe com padrões de comportamento e convicções sobre como se deve controlar a Administração Pública.

Nesse contexto, a redação primitiva do parágrafo 1º do artigo 17 da Lei 8.429/92 vedava a transação, acordo ou conciliação em ações de improbidade administrativa, e esta disposição sempre foi apresentada como obstáculo à solução negociada dos conflitos no campo do direito administrativo sancionador, via da ação de improbidade administrativa [1].

O advento da Lei 13.655/18 acrescentou novas previsões à Lindb (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), impulsionando o debate sobre o uso do consenso como método resolutivo também para as ações de improbidade administrativa, porquanto tornou necessário correlacionar o artigo 17, parágrafo 1º da Lei 8.429/92 com os artigos 26 e 27 da Lindb.

A esperança era a de que a nova disposição suplantasse, via interpretativa, a vedação existente no artigo 17, parágrafo 1º da Lei 8.429/92, em ordem a viabilizar uma "solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais também no âmbito das ações de improbidade administrativa". Isto porque a Lindb, como "metanorma" ou norma de "sobredireito", imprime sobre as demais uma hierarquia funcional-cognitiva, a afastar interpretações de textos de direito público que anunciam proposições normativas em sentido contrário.

Em pouquíssimo tempo foi editada a Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que alterou a redação do parágrafo 1º do artigo 17 da Lei 8.429/92, passando a dispor que "as ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta lei" e o novo §10-A acrescentou que "havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias".

A Lei 14.230/21, que impôs profundas alterações à lei de improbidade administrativa, a propósito do acordo de não persecução civil, disciplinou, no artigo 17-B, que o Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso, celebrá-lo, desde que dele advenham, ao menos, os seguintes resultados: (1) o integral ressarcimento do dano; (2) a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.

A celebração do acordo, que poderá ocorrer no curso da investigação e apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou no momento da execução da sentença condenatória (§4º do artigo 17-B) [2], dependerá, cumulativamente: (1) da oitiva do ente federativo lesado, em momento anterior ou posterior à propositura da ação; (2) de aprovação, no prazo de até 60 dias, pelo órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se anterior ao ajuizamento da ação; (3) de homologação judicial, independentemente de o acordo ocorrer antes ou depois do ajuizamento da ação de improbidade administrativa.

O parágrafo 3º do artigo 17-B da Lei 8.429/92, incluído pela Lei 14.230/21, passa a exigir que "para fins de apuração do valor do dano a ser ressarcido, deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas competente, que se manifestará, com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 (noventa) dias".

Os Tribunais de Contas brasileiros são órgãos constitucionais independentes que buscam, como tive a oportunidade de registrar em outra sede, "na própria Constituição sua identidade e suas competências, as quais não podem ser mitigadas por legislação infraconstitucional, embora possam ser ampliadas por esta via" [3].

Nesse sentido, o legislador da Lei 14.230/21 previu a participação do Tribunal de Contas competente no procedimento dos acordos de não persecução cível, notadamente para se incumbir de apurar, em 90 dias, o montante do dano a ser ressarcido por seu intermédio, se houver. Utilizou-se o legislador da expressão "deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas", prenunciando que a provocação do órgão de controle não se trata de faculdade, senão de dever.

A lei exige que o acordo de não persecução cível negociado pelo MP e com o montante do ressarcimento calculado pelo TC seja submetido à aprovação do órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis no prazo de 60 dias (se não houver ação judicial ajuizada). Depois da aprovação, o acordo deve ser levado à homologação judicial, na forma do artigo 17-B, III.

Caso a negociação do acordo se dê já no curso da ação judicial, o órgão competente do MP submeterá a proposta, acompanhada do cálculo do ressarcimento elaborado pelo Tribunal de Contas ao juiz da causa para fins de homologação, na forma do artigo 17-B, §1º, III.

Como se vê, a Lei 14/230/21 prescreveu um entrelaçamento de competências entre o Ministério Público e o Tribunal de Contas por ocasião da confecção, aceitação e homologação dos termos dos acordos de não persecução cível na improbidade administrativa. O intuito do legislador é o de evitar confronto entre os dois órgãos, preservando a higidez da solução negociada do conflito, sem que haja superposição de instâncias. Se todos participam da construção do acordo, afinal, a obra é conjunta e não solitária.

Tal como escrevi em recente artigo científico ainda inédito e enviado para integrar obra coletiva, organizada, entre outros, pelo professor Fabrício Motta, o papel a ser desempenhado pelo Tribunal de Contas nesse caso é o de árbitro do quantum debeatur [4].

[1] Bem de ver que mesmo antes já havia posições doutrinárias que apontavam o conflito dessa disposição com o verbete preambular da Constituição da República, assim como com o artigo 4º, VII, porquanto a noção de mover processos judiciais a qualquer custo, contrariava o compromisso do Estado brasileiro com a solução pacífica dos conflitos e das controvérsias, na ordem internacional e interna. Além disso, a redação primeira do parágrafo 1º do artigo 17 da Lei 8.429/92 somente vedava literalmente a transação, acordo ou conciliação nas ações (judiciais) de improbidade administrativa, e, portanto, não proibia iniciativas consensuais no curso dos inquéritos civis precedentes.

[2] Mesmo antes da Lei 14.230/21 o STJ admitia a celebração do ANPC em fase posterior à contestação: "É possível acordo de não persecução cível no âmbito da ação de improbidade administrativa em fase recursal (STJ, AREsp 1.314.581/SP, 23/02/2021)". No mesmo sentido, já depois da alteração promovida pela Lei 14.230/21, ver, no STJ, AEResp 102.585-RS.

[3] FERRAZ, Luciano. Controle da Administração Pública: elementos para a compreensão dos Tribunais de Contas, Belo Horizonte: Mandamentos, 1999. p.142.

[4] Essa ideia do Tribunal de Contas como árbitro da sociedade não é nova, tendo aparecido pela primeira vez em FERRAZ, Luciano. Novos Rumos para o controle da administração Pública, Tese de Doutoramento, UFMG, 2003, e reproduzida em Controle e Consensualidade: fundamentos para o controle consensual ad Administração Pública, Belo Horizonte: Forum, 2019. p. 105, verbis"A ênfase dada ao controle posterior, notadamente nos processos de julgamento de contas, aliada à prática sancionatória da atividade de controle, não permite que se evolua da detecção das faltas para as ações corretivas. Daí porque se vislumbra a adoção, pelos tribunais de contas, de expediente assemelhado aos termos de ajustamento de conduta com o objetivo de "contratualizar" com os administradores alternativas e metas para a melhoria do desempenho dos órgãos, entidades e programas. Esse contrato assumirá contornos de verdade "contrato de gestão", e o Tribunal de Contas desempenhará o papel de árbitro entre a sociedade e os agentes encarregados de lidar com a res publica".

Fonte: ConJur

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