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Problemas Decorrentes da Ausência de Atualização dos Limites de Dispensa Previstos no Art. 24 I e II da Lei 8666/93

Por Rodrigo Valgas dos Santos



A ausência de atualização dos limites de dispensa de licitação por valor (art. 24, I e II c/c 23, I, “a” e II, “a” da 8.666/93) tem gerado graves problemas na utilização do instituto. Este texto tem por objetivo enfrentar dois deles. Primeiro, o evidente esvaziamento normativo dos artigos 24, I e II da Lei de Licitações por expressiva desatualização, reduzindo a possibilidade de adequada utilização deste expediente para a realidade dos municípios, mesmo os de pequeno porte. O segundo problema, diz respeito às ações de improbidade administrativa tendo por fundamento justamente a inobservância dos referidos limites de dispensa no exercício orçamentário.

O tema da dispensa por valor demanda outras questões sempre candentes, a exemplo de saber: i) se é possível a cumulação dos limites por órgãos desconcentrados de um mesmo ente; ii) se referem-se a parcelas de uma mesma obra ou serviços ou serviços de mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizados conjunta e concomitantemente; iii) se se trata de parcela de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez (cf. art. 24, I e II da 8.666/93). O recorte pontual que ora fazemos tratará única e exclusivamente das consequências jurídicas da ausência de atualização dos referidos valores.

A Constituição da República reconheceu no art. 37, XXI, que em certas hipóteses excepcionais, não atende ao interesse público primário a realização da licitação. O legislador ao estabelecer na Lei 8.666/93 as hipóteses de dispensa e inexigibilidade densificou referido comando constitucional.

Com efeito, o legislador ordinário não pode frustrar as expectativas do constituinte originário, devendo atendê-las de modo consentâneo à Constituição, estabelecendo pela via infraconstitucional as hipóteses de contratação direta.

Dentre os casos de dispensa de licitação, a Lei 8.666/93 consagrou as dispensas em face do pequeno valor enumerando-as no art. 24, I e II. A premissa do referido dispositivo é que por vezes não é conveniente nem oportuno ao Administrador realizar um processo licitatório estruturalmente custoso, em face do tempo dispendido pelos agentes públicos e gastos da Administração Pública com as formalidades exigidas pelas modalidades de licitação, quando se trata de adquirir algo de valor pouco expressivo.

Tanto é assim que o artigo 26 da Lei de Licitações sequer exige justificativas no caso de dispensa com fundamento no art. 24 I e II, eis que referidos dispositivos foram excepcionados pelo art. 26, caput, da 8.666/93, que os excluiu da necessidade de justificativa, eis que suficiente apenas o valor para legitimar a contratação direta.

Como de conhecimento geral, para atender ao determinado pela Constituição, o legislador fixou os limites de R$ 15.000,00, para obras e serviços de engenharia (24, I), e R$ 8.000,00, para compras e serviços (24, II). Por sua vez, estes dispositivos remetem ao art. 23, I, “a” e 23, II, “a” da Lei de Licitações, quando tratam da modalidade convite.

A última atualização dos valores previstos no art. 23 da 8.666/93 foi realizada no ano de 1998, quando da publicação da lei 9.648/98. Portanto, lá se vão longos 19 anos sem que haja qualquer correção deste valor, que, diga-se de passagem, não apenas pode, mas deve ser realizado de modo cogente pela Administração a partir do disposto no artigo 120 da Lei de Licitações:

Art. 120. Os valores fixados por esta Lei poderão ser anualmente revistos pelo Poder Executivo Federal, que os fará publicar no Diário Oficial da União, observando como limite superior a variação geral dos preços do mercado, no período. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)

Dizemos que se trata de uma obrigação e não apenas de uma faculdade (a despeito do verbo poder), porque sabido que as perdas inflacionárias desde 1998 (mesmo com inflação abaixo de dois dígitos) são expressivas, de modo que a ausência de atualização dos referidos valores simplesmente aniquila a possibilidade legal de dispensa por pequeno valor, visto que atualmente nada ou muito pouca coisa pode ser contratada dentro de limites tão singelos. A ausência de atualização leva ao total esvaziamento do conteúdo normativo da dispensa por pequeno valor.

Acerca da inexpressividade do valor, impende salientar que muitos doutrinadores têm entendimento diverso quanto à pequeneza ou não dos limites fixados pelo legislador. Uns acham muito, outros, pouco. Todavia, ninguém há de duvidar que independentemente das divergências quanto ao tema, o fato é que o próprio legislador foi quem fixou referidos limites como “pequenos” a ponto de justificar a dispensa, e onde o legislador positivou sua vontade, todas as apreciações doutrinárias sobre o tema não passam de mera opinião.

A recente Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais) elevou substancialmente referidos valores de dispensa no art. 29, I e II (R$ 50.000,00 para serviços e compras e R$ 100.000,00 para obras e serviços de engenharia). Claro que mesmo sob a égide da 8.666/93 as estatais - por atuarem na atividade econômica em sentido amplo - já tinham limite dobrado em face do § 1º do art. 24 da Lei de Licitações.

No projeto ainda em andamento da nova Lei Geral de Licitações, o PL 6814/2017, o tema foi tratado no art. 68, I e II, prescrevendo R$ 60.000,00 para obras e serviços de engenharia e tímidos R$ 15.000,00 para serviços e compras, desde que não se possa utilizar a modalidade convite, o que praticamente inviabiliza o instituto da dispensa por pequeno valor e, se aprovado deste modo, trará muitos dissabores aos gestores públicos.

Particularmente pensamos que estas hipóteses de dispensa visam dar agilidade ao Administrador, sendo razoável que para se reduzir os custos operacionais de uma licitação (princípio da economicidade) e desde que observadas as finalidade e princípios vetores da licitação, se possa trabalhar com valores mais próximos daqueles previstos na novel Lei das Estatais (13.303/16).

O fato é que no momento está em vigor a Lei 8.666/93 e os valores lá previstos estão flagrantemente desatualizados. Para se ter uma ideia da defasagem, se atualizarmos pelo IGP-M o valor previsto na Lei 9.648 de 27 de maio de 1998, o valor de R$ 15.000,00 do art. 24, I (obras e serviços de engenharia) chegaria em novembro de 2017 a aproximadamente 66.000,00. Já os limites fixados no art. 24, II (compras e demais serviços), de R$ 8.000,00 passariam em novembro de 2017 para cerca de R$ 35.000,00.

Tema que suscita controvérsia é saber se a Lei para alterar tais valores seria geral (de competência privativa da União) ou, em não sendo norma geral, se os Municípios poderiam legislar supletivamente sobre a matéria, em face do seu interesse local. Inclinamo-nos a pensar que a competência suplementar dos municípios em matéria licitatória deve incidir à espécie.

As modalidades de licitação são efetivamente normas gerais, mas os valores que compreendem cada uma destas modalidades podem ser alterados pelos demais entes federados sob pena de desnaturarmos nossa federação, que por vezes é mais centralizada que muitos países cujo modelo é unitário. De toda sorte, o que restaria vedado aos demais entes federados é aumentar vertiginosamente os valores relativos à cada modalidade, pois isto desnaturaria a regra da licitação pública.

Mesmo para os que entendem sejam os próprios valores normas gerais de competência exclusiva da União e que não possam os municípios legislar sobre o tema, o fato é que a respectiva atualização pelos municípios não fere a norma geral de competência privativa da União. Pelo contrário, a realiza plenamente. Afinal, não se trata de fixar limite ao alvedrio da União, mas de aplicá-lo de modo atualizado mantendo justamente os parâmetros fixados pela própria União.

O leading case sobre a competência municipal para os municípios editarem normas próprias sobre os valores de dispensa de licitação foi enfrentado pelo Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso, que na Resolução de Consulta n. 17/2014, assim pronunciou-se:

Ementa: PREFEITURA DE CAMPOS DE JÚLIO. CONSULTA. Licitações. Normas gerais. Competência privativa da União. Normas específicas. Competência suplementar dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Fixação do Valor Limite das Modalidades Licitatórias. Artigo 23 da Lei nº 8.666/1993. Norma específica da União federal. Possibilidade Constitucional dos demais entes da federação de fixar valores distintos para fixação das modalidades licitatória, mediante lei. Necessidade de respeito à regra constitucional de submissão das aquisições, concessões e alienações mediante licitação. Possibilidade dos demais entes federados de atualizar referidos valores com base no indexador e periodicidade nacionalmente fixados pelo artigo 120 da Lei nº 8.666/1993.

A partir desta decisão diversos municípios do Estado do Mato Grosso passaram a editar leis municipais atualizando referidos valores. Porém, o Ministério Público Estadual insurgiu-se contra estas iniciativas e moveu diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o TJ/MT. O caso paradigmático foi decidido em 23.03.2017, na ADI 132840/2016, da Relatoria do Desembargador Sebastião de Moraes Filho. A Corte Estadual Matogrossense seguiu o entendimento que mera atualização não usurparia a competência da União, dentro, portanto, da autonomia conferida aos municípios

EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade. Leis de municípios matogrossenses que atualizaram os valores limites das modalidades licitatórias previstos no artigo 23 da lei 8.666/93 (lei de licitações e contratos administrativos). Conceito de normas gerais de licitações e contratos administrativos. Doutrina e jurisprudência. Suposta violação ao artigo 193 da constituição do estado de mato grosso. Alegada usurpação de competência privativa da união federal para legislar sobre normas gerais de licitações (cf, art. 22, XXVII). Ausência de inconstitucionalidade nas normas municipais impugnadas porque promoveram mera atualização monetária dos valores previstos na lei nacional. Conceito de federação. Autorregulamentação municipal que tem respaldo nas autonomias conferidas aos entes federados pelo art. 18 da constituição da república federativa do brasil. Princípio da autonomia das coletividades autônomas.

Parece-nos acertada a decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, e doravante esperamos que os municípios brasileiros possam seguir tal iniciativa e editem suas respectivas leis municipais corrigindo os respectivos valores com base na variação geral de preços do mercado, colocando fim a este lamentável quadro de inércia do legislador federal.

Adentremos agora no segundo aspecto relativo às consequências desta ausência de atualização. Trata-se das ações de improbidade administrativa, justamente movidas por alegado malferimento dos limites fixados no art. 24, I e II.

Com efeito, a ausência de atualização traz consequências deletérias aos gestores públicos que corriqueiramente respondem a inúmeras ações de improbidade exatamente sobre o descumprimento - por vezes acidental - do referido, judicializando e criminalizando desnecessariamente o tema, que está tipificado como crime no artigo 89 da Lei de Licitações.

Diante dos limites deste texto, sequer entraremos no aspecto da exigência de dolo para incidência das sanções da Lei de Improbidade Administrativa – LIA, sendo necessário demonstrar que referido descumprimento dos valores de dispensa foi fruto de dolo do agente. A tese que pretendemos lançar é que o teto normativo dos valores com dispensa durante o exercício financeiro, para fins sancionatórios, jamais poderia ter como limite os valores desatualizados, mas os atualizáveis.

Como já visto, a expressiva limitação dos valores de dispensa de licitação pela inércia em atualizá-los, não autoriza, em face do direito sancionador, pretender a incidência de quaisquer sanções penais, em sede ações de improbidade e mesmo nos processos que tramitam nos tribunais de contas, por alegado descumprimento dos limites de dispensa.

Isso decorre da interpretação sistemática da lei 8.666/93, especialmente o cotejo entre o art. 24, I e II e o art. 120. Tal contradição e/ou justificação normativa não autoriza a incidência de sanção pela ausência de antijuridicidade, em face da falta de atualização dos aludidos limites.

Ilícito sujeito à sanção administrativa é conduta (omissiva ou comissiva) (i) típica, (ii) antijurídica e (iii) culpável. Para a caracterização da antijuridicidade há que levar-se em conta a ordem normativa em seu conjunto sistêmico.

Doutro vértice, o tema ganha reforço se enfrentado sob a ótica do direito penal (matriz do direito sancionador também no âmbito administrativo), donde nos valemos como marco teórico das reflexões de Eugenio Raúl ZAFFARONI ao tratar da chamada: tipicidade conglobante, que considera a norma jurídica da qual se extrai o tipo não de modo isolado, mas em função de outras normas, o que pode excluir a lesividade ao bem jurídico tutelado.

O eminente penalista argentino assevera: “Assim como não é racional que o direito proíba a mesma conduta que ordena (cumprimento de dever jurídico), tampouco o será a proibição daquilo que o próprio direito fomenta.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl et alii., Direito penal brasileiro, segundo volume: teoria do delito: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2ª ed., Rio de Janeiro, Revan, 2013, p. 214 e 244).

Utilizando-se deste raciocínio, dizemos nós: como se pode sancionar o agente público - quer por improbidade, quer penalmente - por alegada violação ao limite de dispensa de licitação, quando este mesmo valor deveria estar atualizado (no mínimo dentro da recuperação das perdas inflacionarias pelo IGP-M), especialmente quando a regra específica do art. 120 da Lei 8.666/93 fomenta sua atualização?

Como punir o administrador por pretensa violação à dispensa que apenas ocorre pela omissão do legislador em cumprir com seu dever? Como sancionar via ação de improbidade ou mesmo em ação penal por descumprimento de norma cujo bem jurídico não foi violado se considerados os valores atualizáveis? Afinal, a vontade do legislador é que o valor nominalmente fixado não fosse descumprido, leia-se: valor corrigível no tempo. Resta preservado o bem jurídico tutelado pela norma jurídica, que consiste na tutela da Administração Pública e seu núcleo de princípios, notadamente os previstos no art. 37, caput, da Constituição da República.

A interpretação literal do artigo 24, I e II sem levar-se em conta o artigo 120 da 8.666/93 é equivocada. O Direito não se interpreta em tiras (Eros GRAU), mas no todo, especialmente quando a interpretação tem por objeto o direito sancionador com consequência ao status libertatis ou mesmo para incidência das graves sanções da Lei de Improbidade, que refletem inclusive sobre os direitos políticos fundamentais de voto e candidatura. Tal entendimento incide mesmo que ainda não tenha ocorrido formalmente a alteração dos valores pelos municípios pela via legal (por isso utilizamos a expressão atualizáveis), pois para fins de imposição de sanções o bem jurídico tutelado originariamente pela norma não restou violado.

Evidentemente que a argumentação aqui desenvolvida aplica-se às hipóteses onde os limites de dispensa realizados durante o exercício orçamentário estão dentro dos valores atualizáveis, posto que se as obras e serviços de engenharia ou demais serviços e compras ultrapassarem estes limites, poder-se-ia perquirir de possível malferimento da norma.

Mesmo que descumpridos os limites atualizáveis, para fins de sancionar o administrador, restaria saber se houve dolo e mesmo outras questões relevantes, como cumulação dos limites por órgãos desconcentrados de um mesmo ente; se referem-se a mesma obra ou serviço de mesma natureza que possa ser realizada conjunta e concomitantemente; ou se estamos diante de parcela que poderia ser de serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez.

O tema é palpitante sendo imperioso que os municípios brasileiros passem a editar normas locais atualizando os valores de dispensa por pequeno valor para dar fiel cumprimento aos parâmetros fixados pelo legislador federal. Demais disso, para fins de improbidade ou mesmo processo crime, a interpretação sistemática do art. 24, I e II c/c 120 da Lei 8.666/93, apenas autoriza perquirir de ilegalidade se lidos conjuntamente, restando eximida a antijuridicidade (por exclusão de violação aos bens jurídicos tutelados pela norma: art. 37, caput, da CR) se as obras e serviços de engenharia e demais serviço e compras tiverem ficado dentro dos limites atualizáveis.

 

Fonte: Direito do Estado.

 

 
 
 

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