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Lei Anticorrupção e programas de integridade em escritórios de advocacia

Por Cristiana Fortini e Mariana Magalhães Avelar



A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13) prevê a responsabilização civil e administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos que ela rotula como corruptos. As condutas descritas como corruptas no artigo 5º da lei ultrapassam o cenário das licitações e contratos, embora parte significativa das posturas rechaçadas alcance empresas e entidades inseridas (ou interessadas na inserção) no mercado da administração pública.

O caput do artigo 1º[1] da Lei 12.846/13 sugere que a lei ambiciona alcançar um amplo leque de pessoas jurídicas de direito privado, sejam nacionais ou estrangeiras. Uma vez que pessoas jurídicas constituídas por distintas formas e mesmo entes sem personalidade jurídica podem praticar os atos que a lei visa reprimir, nenhum sentido faria em se limitar a responsabilização a algumas entidades, “liberando” as demais para o cometimento de infrações.

Ocorre que a redação do parágrafo único[2] do mesmo artigo prevê que a lei se aplica às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

Assim, enquanto o caput não individualiza a pessoa jurídica alcançada pela lei, o parágrafo único do artigo 1º, a ele fazendo coro o caput do artigo 5º, reforçam a argumentação de que os efeitos da lei restringem-se às pessoas jurídicas especificamente indicadas[3].

Realmente, a interpretação literal dos dispositivos pode lastrear entendimento mais restritivo, que, todavia, antagoniza com a lógica que perpassa a lei. Se o que se almeja é eliminar ou reduzir a prática de atos de corrupção, para tanto sinalizando que os comportamentos compreendidos como ilícitos poderão conduzir à responsabilização cível e administrativa, o maior alcance faria muito mais sentido.

Não há posição pacificada sobre o assunto na doutrina e não há jurisprudência consolidada a esse respeito. Assim, ainda há espaço para o debate sobre o artigo 1º da Lei Anticorrupção. O artigo 44 do Código Civil prevê que os partidos políticos e as organizações religiosas são espécies de pessoas jurídicas, mas os aborda em incisos distintos. Esse é um dos pontos mais discutidos.

A despeito de interpretações distintas que se possa fazer, dúvida não há de que os escritórios de advocacia são alcançados pela lei, razão pela qual, para além de aconselhar as pessoas jurídicas que compõem sua clientela, cabe-lhes, se intencionam reduzir os riscos de responsabilização por causa da Lei Anticorrupção, olhar para suas entranhas, detectar os maiores riscos a que estariam sujeitos e implementar programas de integridade.

A preocupação com programas de integridade por parte de alguns escritórios de advocacia antecedeu a lei. Determinados clientes, sujeitos a regras outras, como o Foreign Corrupt Practice Act ou o UK Bribery Act, há muito condicionam a celebração de contrato de prestação de serviços advocatícios à comprovação de implementação de programas de integridade.

Já no sistema jurídico nacional, a Lei Anticorrupção não impôs a implementação de programas de integridade. Em verdade, a abordagem a esse respeito foi tímida. Para além de não impor a existência e a efetividade dos programas de integridade[4], a lei os contempla como fator atenuante para fins de aplicação de sanção, tendo o Decreto Federal 8.420/15 estabelecido o impacto que a efetividade do programa propulsiona[5]. A Lei Anticorrupção não exige o compromisso da entidade de promover auditoria, incentivar denúncias de irregularidades e aplicação efetiva do código de ética e de conduta, nem mesmo como requisito para a celebração de acordos de leniência[6].

A faculdade de se implementar o programa de integridade[7] (embora exista relativo estímulo) está em harmonia com a ausência de regra a impor à pessoa jurídica o dever de revelar seus próprios erros. Não há, na Lei Anticorrupção brasileira, previsão para o mandatory disclousure[8]. De fato, para se exigir que as pessoas jurídicas indiquem suas próprias fragilidades, seria crucial o comando impositivo quanto à implementação dos programas de integridade, o que, claro, não seria imune a críticas, sobretudo para pessoas jurídicas não inseridas no mercado das contratações públicas.

A cooperação da pessoa jurídica com as investigações foi contemplada como fator atenuante, consoante dita o artigo 7º, inciso VII. Assim, mesmo que os programas de integridade não sejam cogentes, premia-se, limitadamente, a cooperação. O Decreto Federal 8.420/15 prevê a redução de 2% na hipótese de comunicação espontânea pela pessoa jurídica antes da instauração do processo administrativo de responsabilização sobre o evento, bem como permite a isenção ou atenuação de sanções administrativas previstas em outras normas de licitações e contratos no caso da celebração de acordos de leniência (artigo 40 do Decreto 8.420/2015).

A Portaria Interministerial AGU/CGU 2.278/2016, por sua vez, tem redação mais ampla na medida em que oferece a quem celebra acordo de leniência imunidade a outras sanções administrativas e cíveis aplicadas ao caso.

Mesmo diante de tais disposições, não há compromisso expresso com a inexistência de ações de improbidade em relação àqueles que decidem cooperar e nada se diz sobre os efeitos em matéria de responsabilização das pessoas físicas. De se constatar o limitado impulso ao ato de revelar o cometimento de infração.

Fato é que, tendo se optado por adotar programas de integridade, ou mesmo os tendo implementado em face de compromissos contratuais assumidos ou por comando advindo de outras leis, o caminho é irreversível. Uma vez implementado, a pessoa jurídica terá que lidar com os resultados dele decorrentes. Detectar a prática de ato corrupto imporá não apenas o reformular de práticas e liturgias, como no mínimo provocará a entidade a pensar sobre o que fazer com a informação obtida. Noticiá-la às autoridades é expor a si própria bem como as pessoas físicas envolvidas. E nossa Lei Anticorrupção prestigia moderadamente essas revelações, como antes salientado. Ao se projetar um programa de integridade é importante que a pessoa jurídica e, logo, os escritórios de advocacia prevejam a atitude a ser tomada, sabendo que a escolha não será indolor.

O ideal seria que a Lei Anticorrupção estimulasse tanto os programas de integridade quanto, consequentemente, o self-report, comprometendo-se a isentar a responsabilização das pessoas jurídicas ou, no mínimo, a mitigá-las consideravelmente, afastando a ameaça de ações de improbidade e outras. Isso sem falar em possíveis benefícios dirigidos às pessoas físicas. Contudo, não é essa a literalidade da regra legal.

As linhas básicas de um programa de integridade para as pessoas jurídicas em geral estão alinhavadas no Decreto Federal 8.420/15. Seu artigo 42 enumera aspectos que precisam estar contemplados, a começar do envolvimento da alta administração e de seu apoio. O destaque atribuído à alta direção e ao comportamento dos líderes que comandam a entidade é dotado de enorme simbologia e favorece a adesão dos demais. É o que a doutrina estrangeira convencionou chamar de tone at the top. Assim, enxergar no líder a postura correta é primordial, exigindo dos colegas que estão em postos de coordenação não apenas a autocrítica e o autocontrole, mas a missão de verbalizar e ilustrar o cenário ético que se almeja.

Na hipótese de se instituir programa de integridade, os escritórios de advocacia devem atentar para aspectos relevantes, aqui apresentados sem a pretensão de esgotar a matéria. Em verdade, estamos todos e todas a refletir sobre a melhor forma de zelar pelo ambiente que nos circunda. Os pequenos e médios escritórios de advocacia, que são a realidade do país, agora voltam seus olhares para isso e estamos ainda aprendendo sobre como fazê-lo, inclusive estas articulistas. Logo, os apontamentos aqui derivam do que se pode extrair da legislação brasileira e do entendimento já consolidado em outros países. Destaco a influência dos Estados Unidos[9], não como país imune à corrupção, mas como ator destacado na defesa (sem entrar na discussão das molas propulsoras) da responsabilização das pessoas jurídicas por atos de corrupção.

A primeira cautela está na seleção do seu corpo de colaboradores. Importante que a avaliação sobre o perfil do candidato ou da candidata para qualquer das funções do escritório considere o histórico da pessoa, seus laços familiares, sua filiação a partido político, entre outros aspectos. A avaliação de riscos tem início aí. O exame do perfil psicológico que possa detectar maiores propensões a comportamentos repudiados pela ordem jurídica (em especial os que tangenciam a corrupção) é recomendado, embora impacte financeiramente e não possa, por isso, ser suportado pela maioria esmagadora dos escritórios. A mesma preocupação deve acompanhar a escolha de correspondentes e outros parceiros e fornecedores estratégicos. Em todos os casos, a existência de documentos em que se destaque a intolerância para condutas corruptas (entre outras) e em que se imponha o compromisso de agir segundo o padrão desejado é valiosa. Nesses casos, pode-se avaliar a conveniência de requisitar adesão ao programa de integridade do escritório, criando-se verdadeira cadeia de responsabilidade (compliance chain[10]).

Informar os colaboradores sobre as condutas vedadas, sobre os atos que devem ser evitados, cientificá-los sobre o padrão de comportamento esperado, presente em normas internas que bem conduzam a atuação, é crucial. As pessoas devem saber como se portar ao se dirigirem a agentes públicos, compreender que práticas antigas hoje podem gerar consequências jurídicas graves para o escritório e para a própria pessoa física. Importante que as regras instruam sobre troca de mensagens, comparecimento a reuniões e sobre como reagir diante de situações em que são postuladas, mais ou menos ostensivamente, a concessão de vantagens ilícitas por parte dos agentes públicos.

Importante debater sobre doações para campanhas eleitorais pelos colaboradores. Importante discutir sobre a existência ou não de regras relativas a doações para instituições do terceiro setor. Nos dois casos, a doação pode traduzir risco para a pessoa jurídica. No caso dos candidatos a agentes políticos, esse risco se intensifica quando o escritório mantém vínculos com entidades da administração pública ou ambiciona criá-los, razão pela qual a destinação de recursos a campanha poderá (as circunstâncias devem ser investigadas) revelar mais do que afinidade ideológica. A questão da doação para entidades sem fins lucrativos também importa, a depender de quem são os personagens com os quais a donatária se enlaça.

O cuidado com as informações é igualmente necessário. Escritórios de advocacia são confessionários, são locais em que se acumulam dados que devem ser devidamente protegidos sob o manto do sigilo profissional. A divulgação inadequada de informações pode expor terceiros sejam eles clientes, agentes públicos e outros. A preocupação aqui não é exatamente com a responsabilidade da pessoa jurídica (do escritório) por atos de corrupção, nos moldes como disciplina a Lei Anticorrupção, mas de salvaguardar a confiança depositada pelo contratante. Preocupação com a ética na advocacia não é assunto exclusivo da Lei 12.846/13: além do Estatuto da Advocacia, diploma central referente a ética profissional, podem ser citadas as disposições da Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), que dentre os fundamentos da proteção de dados pessoais estipula o respeito à privacidade e a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem.

Igualmente importante estabelecer política de mapeamento e gestão de riscos compatíveis com a atividade advocatícia exercida pelo escritório, dinâmica está que variará sobretudo em virtude da intensidade do contrato da banca com entidades da administração pública.

Esses cuidados e diretrizes devem ser constantemente aprimorados à luz da efetiva aplicação das políticas estabelecidas de modo que o programa de integridade deve ser constantemente adaptado às novas tecnologias, aos novos riscos percebidos e a eventuais falhas capturadas.

Há que se aprender com a experiência e inclusive com os erros eventualmente cometidos: compliance é caminho, e não ponto de chegada.


[1] Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
[2] Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.
[3] Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos.
[4] A adoção de programas de integridade especificamente pelas entidades que contratam com a administração pública merece olhar distinto diante da maior proximidade e assim do maior risco. Já perpassamos o tema em outros artigos aqui publicados.
[5] Alertamos para o fato de a Lei Anticorrupção prever que o decreto federal abordaria a questão relativa aos programas de integridade. O parágrafo único do artigo 7º nos faz concluir que o legislador entendeu necessário o tratamento uniforme em todo território nacional, ainda que a escolha seja passível de questionamento a respeito de sua inconstitucionalidade. A respeito do tema escrevemos em FORTINI, Cristiana. SALGADO, Laís Rocha. O Decreto Federal nº 8.420/15 e a metodologia de cálculo para fixação da multa. In FORTINI, Cristiana (org). Corrupção e seus múltiplos enfoques jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 60.
[6] A respeito disso, já escrevemos aqui. https://www.conjur.com.br/2018-jun-28/atividade-sancionatoria-proposta-cvm-acordo-supervisao
[7] Não estamos analisando outras leis que abordem o tema, mas especificamente a Lei 12.846/13.
[8] A respeito da regra do mandatory disclosure no Direito norte-americano e dos reflexos de sua implementação, veja-se: YUKINS, Christopher R. Mandatory Disclosure: A Case Study in How Anti-Corruption Measures Can Affect Competition in Defense Markets. Yukins, Christopher R., Mandatory Disclosure: A Case Study in How Anti-Corruption Measures Can Affect Competition in Defense Markets (April 16, 2015). GWU Law School Public Law Research. Paper No. 2015-14. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2600676 . Acesso em 30 de outubro de 2018.
[9] TILLIPMAN, Jéssica. Gifts, Hospitality & the Government Contractor. Briefing Papers, Thomson Reuters, nº 14-7, Junho de 2014. Disponível em: https://scholarship.law.gwu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2332&context=faculty_publications . Acesso em 30 de outubro de 2018.
[10] LOUREIRO, Caio de Souza. Compliance chain: a cadeia de responsabilidade das empresas. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coluna-manesco-compliance-chain-cadeia-de-responsabilidade-das-empresas-09112016 . Acesso em 30 de outubro de 2018.

 

Fonte: Conjur.

 

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