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A polêmica sobre a Lei 14.133 quanto ao tratamento favorecido de MEPPs

Por Cristiana Fortini



Em artigo anteriormente publicado nesta coluna [1], abordamos o tema ao qual retornamos com vistas a analisar alguns aspectos específicos que julgamos relevantes.

Consoante se infere do artigo 4º da Lei 14.133/21, o legislador reforçou a aplicação das disposições constantes dos artigos 42 a 49 da Lei Complementar 123/06, que consagram modalidades distintas de tratamento favorecido para as micro e pequenas empresas.

Sabe-se que a manutenção ou não do tratamento favorecido no ambiente das contratações públicas foi debatida ao longo do processo legislativo que desaguou na nova lei.

Isso porque, como um eterno clássico de torcidas, o tratamento favorecido, especialmente quando envolve o dever de promover licitações exclusivas ou com reserva de cotas, coloca em posições colidentes os que compreendem pertinente o aconchego estatal oferecido, ainda que possa implicar aumento do valor do contrato, dados os preceitos constitucionais [2] e a importância de se impulsionar a existência e sobrevida desse tipo de agente econômico [3], e os que, ainda que sintonizados com os mesmos preceitos, entendem que a acolhida haveria de se dar por mecanismos outros, blindando-se as finalidades tradicionais da contratação pública [4].

Certo é que o movimento em prol do tratamento favorecido havia ganhado musculatura com o advento da Lei Complementar 147/14, que reforçou o propósito de se oferecer tratamento especial.

As mudanças realizadas no caput do artigo 47, a introdução da regra constante do parágrafo único do mesmo dispositivo, a ausência de limite para a subcontratação no artigo 48, inciso II e a exclusão do § 1º do referido artigo 48, são exemplos de reafirmação e intensificação da política pública antes já desenhada.

A Lei 14.133/21, como fruto de tensões e posicionamentos diversos, parece buscar uma posição que, embora não vire as costas ao passado, entende conveniente delimitar o alcance dos benefícios [5].

Uma das mais simbólicas polêmicas a respeito do tratamento favorecido dizia respeito à participação das microempresas e empresas de pequeno porte (MEPPs) em certames cujas estimativas de valor dos contratos futuros (se celebrados) superavam o limite legal de enquadramento como EPP [6].

Sobre isso, o TCU entendeu que os valores dos contratos futuros não eram relevantes para determinar ou não a incidência do tratamento favorecido, bastando que, à época da licitação, as empresas de fato pudessem se apresentar, dada a receita bruta anual, como micro e pequenas empresas [7].

Assim não mais é sob a égide da Lei 14.133/21.

O § 1º do artigo 4º afasta a incidência dos tratamentos favorecidos:

"I — no caso de licitação para aquisição de bens ou contratação de serviços em geral, ao item cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte;

II — no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, às licitações cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte."

Primeiro, de se notar que o legislador decidiu que as benesses da LC 123/06 são aplicáveis em seu conjunto ou estarão totalmente afastadas de forma absoluta. Trata-se de um verdadeiro tudo ou nada.

Em segundo lugar, chama atenção o fato de que a lógica defendida pelo TCU, dada a ausência de regra legal contrária, não mais subsistirá. Os valores estimados dos contratos serão sim parâmetro para o gozo dos benefícios [8].

Mas esse não é o único limite. O § 2º do mesmo artigo 4º prevê que "A obtenção de benefícios a que se refere o caput deste artigo fica limitada às microempresas e às empresas de pequeno porte que, no ano-calendário de realização da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração Pública cujos valores somados extrapolem a receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte, devendo o órgão ou entidade exigir do licitante declaração de observância desse limite na licitação".

A regra menciona que, as MEPPs que já tenham, no ano-calendário de realização da licitação, contratos celebrados com a Administração Pública cujos valores somados extrapolem hoje o montante de R$ 4,8 milhões não poderão participar dos procedimentos licitatórios, senão em condição de plena igualdade com os demais [9].

O legislador parece entender que não mais se justificaria qualquer proteção porque elas já estariam em patamar a desaconselhar o impulso estatal.

Ocorre que a regra provocará ou já está provocando várias discussões.

Celebrar contratos não é sinônimo de receber a contraprestação devida. A MEPPs pode não ter recebido nada, seja porque a entidade pública está inadimplente, seja porque houve suspensão da execução e nada então foi realizado pela contratada, seja por outra razão.

Se assim o é, a empresa não está em posição "confortável" pelo simples fato de ter celebrado contratos cujos valores somam R$ 4,8 milhões. Isso a nosso ver seria suficiente para enxergar problema no dispositivo.

Além disso contratos são anulados e revogados. Logo, a interpretação não poderá ser alheia a tais acontecimentos, quando então o contrato há de se desprezado porque não mais existe. Pobre da MEPP cujo contrato vier a desaparecer após a licitação da qual não participou agasalhada pelo tratamento favorecido diante da metodologia legal.

Marçal Justen Filho [10] tem defendido que há de se contabilizar contratos celebrados com entidades estranhas à Administração Pública para fins de incidência da régua legal. Com as necessárias escusas, discordamos porque não há na lei referência a contratos privados e não entendemos possível estender a letra da lei. Quisesse o legislador assim, embora a opção viesse a gerar dificuldades práticas em termos de checagem de informação, assim teria redigido [11].

Também divergimos do entendimento do estimado professor [12] quando argumenta que há que se realizar uma operação matemática diante de determinadas situações, com vistas a identificar qual o limite ainda disponível. Assim, se os contratos já celebrados com a Administração Pública, no ano-calendário, totalizam R$ 4 milhões, a participação com tratamento favorecido apenas se daria para contratos cujo valor estimado fosse de até R$ 800 mil.

Não entendemos assim. Novamente o legislador até poderia ter assim estabelecido, mas não o fez. Portanto, se não atingido o teto, elas poderão participar de novas licitações em condição privilegiada qualquer que seja o valor estimado, desde que abaixo dos limites constantes dos incisos I e II do artigo 4º

Infelizmente, a não utilização da nova lei vai apenas postergar o pronunciamento do TCU sobre o tema, o que traduziria relevante direcionamento.

 

[1] https://www.conjur.com.br/2021-ago-19/interesse-publico-tratamento-favorecido-micro-pequenas-empresas

[2] Destaque para os artigos 170, IX e 179 da Constituição da República

[3] Sobre a utilização das contratações públicas como mecanismo de política pública, conferir: FORTINI, Cristiana; RESENDE, Mariana Bueno. A função social das contratações públicas: um olhar para além do Brasil. In: PÉRCIO, Gabriela Verona; FORTINI, Cristiana (Coord.). Inteligência e Inovação em Contratação Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2020. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/4127/4310/28811. Acesso em: 18 de maio de 2022.

[4] VIEIRA, Priscilla. Desenquadramento Ficto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte na nova lei de licitações. Disponível em: https://www.linkedin.com/posts/priscillalicitacao_empresas-microempresas-empresasdepequenoporte-activity-6931983443442495488-hmxP?utm_source=linkedin_share&utm_medium=android_app. Acesso em: 18 de maio de 2022.

[5] OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. Comentários ao art. 4º. In: FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO, Tatiana. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 67.

[6] Acórdão 1819/18, Plenário.

[7] Artigo 3º, incisos I e II da LC nº 123/06.

[8] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 12ª ed., Salvador: Ed. Juspodivm, 2021.

[9] STROPPA, Christianne de Carvalho. Capítulo I - Do âmbito de aplicação desta lei - Artigos 1º a 4º. In: Dal Pozzo, Augusto Neves; ZOCKUN, Maurício Zockun; CAMMAROSANO, Márcio. Lei de Licitações e Contratos Administrativos Comentada: Lei 14.133/21. São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2021.

[10][10] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, pg 90 e 91

[11] Claro que a empresa se responsabiliza pelas declarações falsas emitidas. Mas difícil seria inclusive concluir pela falsidade porque os contratos privados não são acessáveis. Inexiste, como se sabe, um equivalente ao PNCP a resumir informações desta índole.

[12] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, pg 91

Fonte: ConJur

 

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