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Shows artísticos: o novo velho problema

Por Fabrício Motta



A nova velha polêmica mais recente (que o leitor e a leitora perdoem esse estranho e contraditório atentado às regras da linguagem) que mereceu espaço na imprensa foi a realização de shows artísticos mediante pagamento de cachês impressionantes às custas do erário. Para poupar o tempo, a paciência e preservar o humor deste articulista e dos leitores, vou me abster de reiterar nomes, cifras e declarações dos envolvidos, tentando manter a objetividade e juridicidade do comentário [1].

O tema não é novo, e não há necessidade de entrar na polêmica a respeito da interpretação adequada da expressão panis et circences (pão e circo) no contexto da política do império romano para demonstrar sua longevidade. No Estado Social de Direito plasmado pela Constituição de 1988, o lazer é um direito fundamental (artigo 6º caput) e é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios proporcionar os meios de acesso à cultura (artigo 23, V) — afinal de contas, "a gente não quer só comida; a gente quer comida, diversão e arte", como cantam os Titãs.

Entretanto, existem prioridades constitucionais claramente determinadas, inclusive com relação aos recursos para seu custeio (como a educação, claro). Ao mesmo tempo, toda e qualquer decisão pública alocatória de recursos implica na realização de escolhas que devem ser consistentemente motivadas em razão da multidimensionalidade e complexidade dos diversos interesses públicos envolvidos. Em uma realidade dura de muitos direitos básicos que ainda aguardam concretude, escolher um gasto em detrimento de outro demanda planejamento, transparência, probidade e comprometimento com o interesse público.

A despeito das controvérsias envolvendo os artistas e sua desinformação — deliberada ou não — sobre o tema, é importante ser claro, mesmo esquecendo um pouco a técnica e as leis de finanças públicas em prol da didática: a mais importante distinção aplicável à origem dos recursos os divide simplesmente em públicos e privados. Se os recursos são públicos, as diversas classificações e origens orçamentárias são relevantes principalmente para entender quem tem o dever de fiscalizar sua aplicação e punir eventuais desvios [2] — os princípios aplicáveis (legalidade, moralidade, publicidade, eficiência, probidade, dentre outros) serão os mesmos. Idênticos princípios se impõem quando se trata de renúncia de receita, como ocorre com a Lei Rouanet, além de diversas regras fiscais específicas.

Feito o misto de introdução e desabafo, passo a analisar a contratação direta por inexigibilidade de licitação, nos termos da Lei 14.133/21. Tentando ser sucinto e didático, elenco os pontos que me parecem mais relevantes:

- A possibilidade de contratação direta não afasta, mas fortalece o dever de motivar as razões que levaram a Administração à escolha do contratado (por qual razão foi escolhida essa cantora, e não aquela, por exemplo?);

- A inexistência de licitação atrai para o gestor o dever de declinar as razões técnicas e jurídicas em razão das quais o contratado foi escolhido, pois na maioria das vezes o objeto contratual poderá ser executado satisfatoriamente por diferentes artistas. Essa possibilidade de escolha entre diversos eventuais artistas que possam atender à Administração não é juridicamente indiferente, mas condicionada em razão da necessidade de se buscar a melhor alternativa para o interesse público;

- Ausência de licitação não significa contratar a qualquer preço. A necessidade de justificar os preços deve ser feita de forma complementar aos procedimentos e parâmetros que objetivam estimar previamente o valor da futura contratação (artigo 23). Nos termos do artigo 23, § 4º, quando não for possível estimar o valor do objeto pelos meios ordinários "o contratado deverá comprovar previamente que os preços estão em conformidade com os praticados em contratações semelhantes de objetos de mesma natureza, por meio da apresentação de notas fiscais emitidas para outros contratantes no período de até 1 (um) ano anterior à data da contratação pela Administração";

- A justificativa de preço não é necessariamente identificada com o critério de julgamento menor preço, uma vez que outras finalidades públicas podem justificar o uso do poder de contratação do Estado (fomento a artistas regionais, por exemplo). Tal possibilidade, entretanto, exige que o gestor responsável justifique, mediante juízo de proporcionalidade, os benefícios auferidos para o interesse público;

- O artigo 74, §2º rechaça a chamada "exclusividade temporária", prática comum na contratação de shows artísticos. Não se admite a apresentação de autorização/atesto/carta de exclusividade restrita aos dias e à localidade do evento;

- A consagração pela crítica especializada ou pela opinião pública, requisito para a licitude da contratação, não exige necessariamente consagração nacional; e a divulgação no Portal Nacional de Contratações Públicas deverá identificar os custos do cachê do artista, dos músicos ou da banda, quando houver, do transporte, da hospedagem, da infraestrutura, da logística do evento e das demais despesas específicas (artigo 94, § 2º).

Como anotou Joel Niebuhr, "A proibição de contratar com empresário não exclusivo é medida prestante a impedir que terceiros aufiram ganhos desproporcionais às custas dos artistas. Ora, o empresário exclusivo tem com o artista contrato que lhe assegura a exclusividade, cujas cláusulas provavelmente estipulam qual o montante de sua remuneração ou o parâmetro para determiná-la, recaindo frequentemente sobre porcentagem dos valores recebidos. Já o empresário não exclusivo paga ao artista o valor por ele estipulado e, com isso, vê-se livre para acertar com o Poder Público o preço que quiser cobrar, o que lhe faculta estabelecer a sua remuneração em valores bastante elevados, até bem acima do que ganha o artista. Assim sendo, por obséquio à economicidade e à moralidade administrativa, que se celebre o contrato diretamente com o artista" [3].

A decisão administrativa de alocar recursos públicos para realização de shows artísticos, apesar de discricionária, é balizada pela Constituição e adstrita às especificidades do caso concreto. Nesse particular, é importante atentar para a efetiva execução das vinculações orçamentárias constitucionais (especialmente, em educação e saúde). Ainda assim, mesmo que se tenha aplicado o mínimo constitucional em educação, por exemplo, existem metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação que não podem ser meramente retóricas, como se fossem conselhos. A decisão deve ainda considerar, analiticamente, as consequências práticas da escolha (artigo 20, Lindb) para efetuar juízo de proporcionalidade. Algumas perguntas sinalizam o percurso decisório que o gestor deverá percorrer, motivadamente, para justificar sua escolha. Por exemplo: o dispêndio de alguns milhões de reais na realização de um show trará qual retorno para o município e para a sociedade (retorno não necessariamente econômico)? O que poderia ser feito com esse mesmo valor para o atendimento de serviços públicos sociais que são oferecidos de forma insatisfatória? Haveria outra opção mais econômica para proporcionar diversão e cultura para a comunidade?

A questão não é nova, comecei afirmando. Nova talvez, só a velha desfaçatez com os recursos públicos disfarçada com novos argumentos.

[1] Alguns links apenas para rememorar o que se discute: https://www.nexojornal.com.br/extra/2022/06/04/Minist%C3%A9rio-P%C3%BAblico-questiona-shows-de-sertanejos-em-seis-estados;

https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2022/05/30/gastos-com-shows-sertanejos-equivalem-a-23percent-de-investimentos-em-educacao-basica-em-conceicao-do-mato-dentro.ghtml;

https://extra.globo.com/tv-e-lazer/ze-neto-cristiano-receberam-400-mil-de-prefeitura-por-show-em-que-criticaram-rouanet-anitta-rv1-1-25510769.html.

[2] A respeito do uso de recursos da CFEM para o pagamento de shows escreveu recentemente o prof. Fernando Scaff: https://www.conjur.com.br/2022-jun-07/contas-vista-cfem-show-gusttavo-lima

[3] NIEBUHR, Joel. Dispensa e inexigibilidade de licitação pública. 4. ed. rev. e ampl., Belo Horizonte: Fórum, 2015.

Fonte: ConJur

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