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O Direito Administrativo continua vivo durante a pandemia

Por Fabrício Motta



Como todo acontecimento de largo impacto, a pandemia na saúde mundial já ganhou sigla de identificação (Covid-19) que lhe conferiu vida própria, relevante e conhecida ao ponto de lhe dispensar de qualquer apresentação. Ainda que não tenhamos precisão quanto ao alcance dos impactos sociais, econômicos e mesmo políticos oriundos da pandemia, temos todos a certeza de que serão profundos e duradouros. Entretanto, neste breve ensaio pretendo refletir a respeito das repercussões da situação de emergência no Direito Administrativo, notadamente diante das muitas referências em discussões travadas com o auxílio de instrumentos tecnológicos que nos permitem superar a distância física e alcançar a imensidão do mundo virtual.

Não há dúvidas a respeito da importância desse ramo do conhecimento jurídico no momento em que se trata de disciplinar a resposta do Estado, por meio dos órgãos e entidades que compõem a Administração Pública, no gerenciamento de uma situação de emergência que exige ações variadas e coordenadas, com o uso de recursos públicos e com vistas à proteção do interesse público. O que se questiona, em especial, é se os instrumentos previstos na Lei nº 13.979/20 teriam o condão de destruir o edifício que conhecemos como Direito Administrativo, ou ao menos de lhe impor uma ampla reforma, desde a estrutura básica até os seus ornamentos.

O Direito Administrativo Brasileiro filia-se ao sistema que se costuma chamar de continental, em oposição ao sistema conhecido como common law. A tradição continental, que entre nós teve na Revolução Francesa o influxo que lhe concedeu a força inicial, estatui suas bases no equilíbrio entre autoridade e liberdade por meio do reconhecimento de princípios como separação de poderes, legalidade e reconhecimento de direitos individuais. Fiel à tradição das revoluções liberais, o Direito Administrativo à francesa nasce justamente com o escopo de proteger as liberdades individuais da atuação crescente e desmedida do Estado. A conjunção entre marcos filosóficos, políticos e jurídicos determinou o entendimento de que a fonte de todo o poder reside essencialmente na nação, e a nação não reconhece nenhum interesse acima do seu e não aceita nenhuma lei ou autoridade que não a sua. A mudança, com relação ao Antigo Regime, foi intensa e tentadora: saía de cena o governo pessoal e arbitrário, fundado em um pretenso poder divino, para ceder lugar a um governo fundado nas leis, em sua legitimidade e em suas competências. A intensidade da mudança e seus dois pilares de sustentação — legalidade e interesse público — foram objeto de controvérsia desde o início.

Restringindo a análise ao Brasil, há tempos se fala em “crise do direito administrativo” ou mesmo na necessidade do surgimento de uma reforma geral de suas bases em razão das diversas alterações no perfil do Estado, sobretudo em decorrência da Constituição de 1988. Odete Medauar foi pioneira na análise, entre os doutrinadores brasileiros, das alterações sofridas pelo Direito Administrativo. O estudo, empreendido na primeira edição da obra “Direito Administrativo em Evolução”, datada de 1993, procura analisar as transformações nas bases clássicas do Direito Administrativo, estudando, inicialmente, os institutos tradicionais frente ao quadro político-institucional do momento de seu surgimento e, posteriormente, verificando as alterações vivenciadas nas matrizes clássicas frente ao novo cenário político-institucional. A obra identificou tendências que se confirmariam nos dias atuais, sobretudo a alteração na compreensão do alcance dos princípios da legalidade e do interesse público, temas que continuam essenciais. Em seguida, foram editadas outras obras de qualidade destinadas à análise das transformações do Direito Administrativo, assinadas, em ordem cronológica, por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Patrícia Baptista, João Batista Gomes Moreira e Gustavo Binenbojm, dando ensejo a um movimento incessante.

Vou centrar esta breve análise no estudo feito pelo eminente Desembargador Federal João Batista Gomes Moreira, em 2004, não apenas em razão na qualidade de sua obra e de minha admiração — fruto de uma amizade de quase três décadas — mas sobretudo em razão do subtítulo inspirado e provocador que utilizou: “da rigidez autoritária à flexibilidade democrática”. O autor, em apertada síntese, elenca fundamentos teóricos e históricos para identificar a existência de um giro copérnico, permutando decididamente a noção de poder/prerrogativa pública pela finalidade pública como centro sistêmico do direito administrativo, que permite a esse ramo jurídico continuar servindo de instrumento para a plenitude democrática, sem prejuízo da eficiência da administração pública.

O fundamento filosófico principal é identificado com a superação do paradigma cartesiano e o afluente teórico-histórico reside na reconciliação do Estado com a sociedade. Nesse movimento de reaproximação, o Estado deixa de ser visto como titular de direitos (e de razões de Estado) para ser concebido como promotor do autêntico interesse público, por meio do uso de instrumentos democraticamente legitimados; a verticalidade converte-se em horizontalidade e o emprego da força sujeita-se a constante controle de proporcionalidade, ao fim de interesse público visado [1].A ideia de supremacia incondicional do interesse público, segundo o autor, contém o germe do autoritarismo traduzido nas “razões de Estado”, de que é exemplo histórico a doutrina da segurança nacional. “Não há prioridade absoluta do coletivo sobre o individual (ou do público sobre o privado). A prevalência dos interesses gerais da coletividade, em detrimento de interesses individuais, depende de um juízo de ponderação proporcional expressamente declarado (motivação), conforme as circunstâncias do caso concreto, a partir de parâmetros substantivos erigidos pela própria Constituição” [2].

A conclusão abrangente do reflexo da mudança de paradigma nos diversos institutos do Direito Administrativo pode ser sintetizada com a transcrição abaixo:

“Em função da sequência de paradigmas, a administração pública e o direito administrativo percorrem três modelos sequenciais, sendo o último deles o modelo sistêmico e democrático, em que a estrutura piramidal, hierárquica, autoritária (baseada nas prerrogativas de poder) converte-se em horizontal, processual e participativa. Resultado disso, os institutos de direito administrativo sofrem transformações,
arrolando-se especificamente: a) o esmaecimento, senão eliminação, da dicotomia interna da administração pública (entidades públicas e privadas, regime estatutário e contratual, bens essencialmente públicos e do patrimônio fiscal, contrato administrativo e contrato privado da administração, serviço público e atividades econômicas); b) no lugar do ato administrativo unilateral, imperativo, imotivado, presumidamente legítimo e incontrolável sob os aspectos de mérito, vem a noção de horizontalidade, por meio do processo (devido processo legal), cujos atos decisórios sujeitam-se a controle judicial também de mérito, pelo critério de razoabilidade (esta orientação tem especial aplicação aos atos de polícia administrativa, de intervenção na propriedade e no domínio econômico e de administração tributária); c) contrariamente à ideia de isolamento, o
ato administrativo deve ser situado e interpretado no contexto global de atividades e políticas públicas; d) as políticas deixam de ser instrumentos meramente programáticos para se tornarem fontes de interesses legítimos judicialmente demandáveis; e) oferece-se ao administrador maior liberdade (flexibilidade) na eleição de meios para atingir o interesse público; em compensação, a discricionariedade deve satisfação ao
cidadão, exigindo-se que principalmente os atos discricionários sejam motivados, com base nos princípios constitucionais; f) os serviços públicos definem-se menos pelo regime jurídico exorbitante e mais como instrumentos de realização dos direitos humanos fundamentais; g) o princípio da legalidade da administração pública torna-se princípio
da juridicidade, da legitimidade ou da constitucionalidade, no intuito de fazer prevalecer a finalidade da norma, os princípios e valores constitucionais e, em síntese, a justiça” [3].

Voltemos à triste realidade marcada pela pandemia e seus reflexos no ordenamento jurídico, notadamente no que ser refere à Lei nº 13.979/20.

Há consenso de que a Administração Pública não pode se limitar a fórmulas rígidas e às soluções tradicionais diante da natural mutabilidade das necessidades públicas, e que a dinâmica do interesse público exige mecanismos flexíveis para seu real atendimento. Em se tratando de momento singular, entretanto, as soluções buscadas devem permitir acudir à emergência principal (resguardar a saúde da população) sem desbordar dos cânones jurídicos que estruturam a atuação do Estado (no tocante aos limites à intervenção no mercado, por exemplo, e à necessária transparência e sujeição aos controles constitucionais).

Por se tratarem de respostas excepcionais, as soluções jurídicas emergenciais trazem como contrapartida maior ônus argumentativo e de transparência como contrapontos necessários à legitimação de medidas que desbordam das prerrogativas e restrições normais. A exigência de motivação congruente de toda e qualquer medida jurídica, desta forma, é reforçada para que se conheçam as dificuldades reais do gestor e as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado sua ação, como exige a LINDB. As medidas de transparência, por outro lado, devem ser incrementadas para permitir o amplo conhecimento e controle das ações do Estado, ainda que levadas em consideração as circunstâncias especiais de cada atuação.

No que se refere ao regime jurídico das contratações públicas, há tempos se discute a necessidade de repensar o regime de prerrogativas contratuais do Estado para que seja possível realmente permitir contratações eficientes, não só pretensamente econômicas. O primado da busca de soluções consensuais se vê reforçado diante da situação atual em razão do despertar da função social do contrato administrativo, apta a ensejar a consideração também dos legítimos direitos dos particulares como dignos da mais alta proteção [4]. Desta forma, ganha nova atenção o questionamento que já tem sido feito pela doutrina relativo ao desenho normativo de um processo de contratação extremamente burocrático, repleto de fases e documentos que nem sempre possuem relação com a finalidade principal do contrato. A regulação exaustiva impede flexibilidade na busca das boas contratações dos “bons contratantes”, tolhendo iniciativas dos agentes públicos nesse sentido por amarrá-los à um procedimento repleto de formalismos. As cláusulas exorbitantes, por outro lado, foram inspiradas no tradicional regime da concessão de serviço público, no qual a natural importância do serviço prestado à coletividade recomenda a existência de determinadas prerrogativas para o Estado. A generalização de cláusulas que consagram a primazia do Estado, por outro lado, tem custo econômico que obrigatoriamente se refere no valor do contrato – o Estado paga mais caro não somente em razão de corrupção e de suas ineficiências, mas também porque impõe ao particular riscos de instabilização contratual que são precificados.

No primado da flexibilidade democrática, as medidas de força interventivas no mercado devem ser exceção – o abuso de requisições administrativas e o preterimento de soluções contratuais podem caracterizar ilegítima constrição do particular e afronta a direitos individuais que, por imposição constitucional, também conformam a atuação estatal no domínio econômico. Por incrível que pareça, a ampliação do uso de requisições mostrou a descoordenação total das atuações dos entes federados, em atuações individuais e isoladas que colocam em risco a eficácia do combate à emergência no Estado Federal como um todo [5]. Para nós, professores de Direito Administrativo, registro que uma externalidade positiva do momento foi o grande número de novos exemplos, livrando-nos da casuística elencada no Decreto-Lei nº 4.812/42.

Finalmente, legalidade não se resume à lei, mas ao ordenamento como um todo. O conhecido mantra “a Administração só pode fazer o que a lei autoriza” há tempos demanda interpretação adequada, à luz da força normativa da Constituição e de princípios jurídicos lá consagrados, todos a sugerir maior grau de abrangência para a função normativa do Executivo. Entretanto, medidas que implicam restrição a direitos fundamentais possuem proteção ampliada em razão de sua relevância, e sua mitigação é incompatível com mero abrandamento da legalidade por decretos, portarias e outros atos.

Em síntese, os institutos, regras e princípios do Direito Administrativo permanecem vivos, mas sofrem a calibragem necessária para que possam continuar a permitir atuação flexível e democrática da Administração Pública. Qual a razão de se propugnar por um novo Direito Administrativo, se muitas das alterações já estão sendo discutidas e propugnadas há um bom tempo, em plena harmonia com o nosso sistema jurídico? Arrisco um palpite: há maior resistência às mudanças por parte dos órgãos de controle, muitas vezes propugnando por interpretações retrospectivas que acabam condicionando e tolhendo a ação administrativa, mesmo nos quadros admitidos pelo ordenamento jurídico-normativo. Não me refiro, por evidente, à casos de corrupção, mau uso de recursos públicos e ações patrimonialistas praticadas sob quaisquer vestes ou subterfúgios. Refiro-me a um perfil de atuação que poderia ser indutor, mantendo presente as finalidades das ações de controle, mas que muitas vezes se revela estático, auto-referente e indiferente às escolhas administrativas legitimamente atribuídas aos gestores. Um outro palpite: a necessidade de conexões interdisciplinares é cada dia mais presente, pois os problemas complexos enfrentados pela Administração Pública demandam transversalidade. Emerge aqui a importância da governança, entendida em sentido informal como o conjunto de arranjos jurídico-institucionais que precisam estar presentes para que qualquer gestor possa entregar resultados; não é possível continuar dependendo de gestores excepcionais e com boas intenções para que a Administração funcione. Mas esses dois palpites merecem um texto específico, com mais reflexão e fundamentos.

Quanto ao momento atual, o que esperar? Dos gestores públicos, são esperadas ações minimamente planejadas, motivadas e transparentes, com agilidade necessária para atender à emergência nos quadros gizados de forma especial pelo ordenamento jurídico. Das entidades e agentes do controle, se espera proporcionalidade, deferência e operatividade incompatíveis, certos de que a rigidez autoritária implicará perecimento do próprio interesse público. Nas simples palavras do próprio João Batista Gomes Moreira, magistrado, o gestor está obrigado a buscar a solução mais eficiente – mas o controle tem que se contentar com atuação que seja razoável.

Referências:

[1] MOREIRA, João Batista Gomes. Direito administrativo: da rigidez autoritária à flexibilidade democrática. 3.ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 20915, p.553.

[2] Id. P.346.

[3] ID. P.554.

[4] Sobre o tema, destaco excelentes artigos de Luciano Ferraz (https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/luciano-ferraz-contratos-administrativos-flexibilidade) e Joel Niebuhr (https://www.zenite.blog.br/o-que-fazer-com-os-contratos-administrativos-em-tempos-de-coronavirus/).

[5] Exemplo retratado na notícia: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,confisco-de-luvas-a-respiradores-no-brasil-opoe-uniao-a-estados,70003249899.

 

Fonte: Conjur.

 

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